É preciso ter azar

Sem rodeios: está aqui a melhor comédia americana dos últimos anos, prova de que há quem não esteja interessado em perpetuar as alarvidades indigentes e desengraçadas que se querem fazer passar por humor.

O mais espantoso é que, no papel "Um Azar do Caraças" é uma alarvidade: é a história de um pateta que engravida um engate ocasional e da reacção do casal improvável. Tudo podia ter corrido tão mal - mas é esquecer o nome que está aos comandos do filme: Judd Apatow, criador da série TV "Freaks and Geeks", autor da comédia-surpresa "Virgem aos 40 Anos", produtor de "As Corridas Loucas de Ricky Bobby" e de "Superbaldas" (Greg Mottola, 2007).

Com Apatow, esta premissa que tem tudo para descambar na alarvidade transforma-se numa comédia afectuosa e atenta que nunca faz pouco das suas personagens. Sim, Ben não faz outra coisa que não seja charrar-se e embebedar-se com os colegas de apartamento enquanto sonham com um site de mamas de celebridades que nunca passará da ambição. Sim, Allison não tem coragem de dizer aos patrões num canal TV de fofoca que está grávida para não perder a promoção que tanto almejava. Sim, nada parece juntar estas duas personagens, a não ser uma noite de copos num bar em que Allison, "abandonada" pela irmã mãegalinha, se deixa encantar pela canhestrice de Ben e o leva lá para casa para uma queca rápida. Mas estas personagens não são simples "bonecos", antes gente de carne e osso que podemos conhecer do emprego, do liceu, do bar, dos jantares em casa de amigos. E o que lhes acontece não é um aglomerado de gagues previsíveis que acabam com o final feliz obrigatório. O que lhes acontece é a passagem à idade adulta de dois "adolescentes" tardios que se vêem forçados a assumir a responsabilidade pelas suas vidas sem poderem recorrer ao manual de instruções, que, aliás, nem existe. A arte de Apatow reside toda no "embrulho" dessa "seriedade" (que ameaça sempre cair no melodrama mas o evita sempre) dentro de uma comédia que, à superfície, não se diferencia grandemente da concorrência.Lá dentro, contudo, há um guião admiravelmente construido, que dá às personagens o tempo necessário para se desenvolverem e lhes empresta uma densidade e uma complexidade raras em comédias contemporâneas.

Há, no entanto, um problema que "trava" a ambição de "Um Azar do Caraças": à excelência do guião e das interpretações, Apatow não é capaz de fazer corresponder mais do que uma ilustração banal, quase televisiva. No limite, o que faz disto cinema não é uma estética visual ou formal, mas apenas o ritmo significativamente mais lento e descontraído da progressão narrativa, que permite explorar as personagens e as situações sem estarem submetidas à tirania dos intervalos publicitários todos os 15 minutos. O que o impede de ser a obra-prima que merecia mas não impede que seja a melhor comédia americana que vimos em muitos anos.

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