O discípulo ultrapassa o mestre

Em "À Prova de Morte", Tarantino fetichizava as pernas de Sydney Tamiia Poitier a passear por Austin fora da janela do carro, especialmente aquela que terminaria decepada pela colisão final com o carro de Kurt Russell.

Em "Planeta Terror", Robert Rodriguez responde-lhe à letra: Rose McGowan perde a sua perna direita à boca de uns soldados zombieficados, mas sobrevive para a substituir, primeiro, por uma perna de mesa em madeira e, depois, por uma pistola metralhadora. Não é, evidentemente, um acaso. Não é suposto ser: "Planeta Terror" é a outra metade da "sessão dupla" em homenagem ao cinema xunga clássico que Tarantino e Rodriguez pensaram em conjunto e realizaram em separado. O que já não era nada previsível era que "Planeta Terror" - como de costume um "tour de force" do realizador texano, que para além de realizar e escrever também dirigiu a fotografia e os efeitos especiais, montou e compôs a banda-sonora - seja o grande filme dos dois.

Coloquemos a coisa assim: onde, com "À Prova de Morte", Tarantino fez um filme "à maneira de" mas deixou o respeito pelo género tolherlhe a energia, sobretudo depois de um sublime "Kill Bill" onde se apropriava com virtuosismo dos códigos do género para os recriar à sua maneira, "Planeta Terror" é o "Kill Bill" de Rodriguez. Um objecto que pega nas coordenadas de base e as relê com paixão, entusiasmo, energia e personalidade, a meio caminho entre a "exploitation" feita por tuta e meia de Corman e a revisitação dos códigos de género à John Carpenter (figura tutelar a quem se agradece no genérico final), mas com a perfeita noção de que já não é possível fazer "à maneira de" mas apenas refazer à sua própria maneira.

Fetichista, "Planeta Terror" é-o, mas de maneira diferente de "À Prova de Morte", embora em comum a ambos se mantenha um "elogio do artesanato" (mesmo que financiado com linha de crédito...) e da inventividade série-B; onde Tarantino erguia uma espécie de elegia pela impossibilidade de recuperar a inocência de um certo tipo de experiência cinéfila, Rodriguez prefere acreditar (e provar!) que essa inocência pode ser recapturada nas condições ideais de temperatura e pressão. No caso, uma espécie de "western zombie" ambientado numa cidadezinha texana onde uma experiência militar com uma arma bioquímica corre mal e o gás libertado cria uma epidemia de zombies com os quais os nossos heróis vão ter de se haver.

De um restaurante de estrada a um hospital e a uma base militar, a "cavalaria" vai ter de lutar com os índios zombies infectados, com muita metralhadora, muito tiro, muito sangue a voar, muita víscera à mostra e até alguns esquartejamentos gráficos - mas tudo feito à maneira, com riscos, cortes e saltos na película, muito grande plano gratuito de seios lascivos e corpos femininos esculturais e um cuidado extremo para que tudo pareça artesanal, amador, caseirinho. Tarantino desistia desses truques a dada altura de "À Prova de Morte"; Rodriguez mantém a ilusão a correr até ao final da projecção, numa atenção maníaca ao pormenor, ao respeito pela gramática e pelo livro de estilo do género.

Onde Tarantino fazia um exercício teórico típico de estudioso analista, Rodriguez prefere-lhe a prova prática. E "Planeta Terror" está muito mais próximo do vale-tudo de um verdadeiro filme xunga do que "À Prova de Morte", como fica provado pela tal perna-metralhadora explorada "ad nauseam" na publicidade mas que (à boa maneira de um filme xunga clássico) leva o seu tempo a fazer a sua gloriosa aparição e que é uma espécie de "símbolo" do que a dupla quis recuperar com "Grindhouse". No fundo, no fundo, as teorias são muito bonitas mas é na prática que a coisa se prova. E "Planeta Terror" é uma prova prática de estadão.

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