Jorge Cramez não quis matar o amor

Pode dizer-se que o cinema o salvou, e ele agora retribui, usando o cinema para salvar na tela os que não puderam ser salvos no mundo. Aos quatro anos "a mamã" dizia-lhe: "Ou come a sopa ou não vai à matiné domingo". Depois de regressar de Angola (com 11 anos) e a partir dos 13, 14 (ainda estava no Porto), via "dois, três filmes por dia". E quando veio para Lisboa "acumulava as idas à Cinemateca com os restantes filmes". Pode dizer-se que o cinema o salvou.

Jorge Cramez, morador em Lisboa, habitual anotador nos filmes de Teresa Villaverde, ex-dono do bar Captain Kirk, no Bairro Alto. Chega à realização de longa-metragens já depois dos 40 e à primeira oferece um cometa, dois rostos atravessando a tela à procura do que se designa por amor. Em "O Capacete Dourado" o estreante Eduardo Frazão (atenção a ele) é Jota, Ana Moreira é Margarida. São adolescentes em Vila Real. Ele, citando Cramez, "mais ou menos desenraizado, no sentido social, com a escola e, no sentido familiar, com o pai, e o único universo que é verdadeiro é o que ele partilha com o amigo Rato". E ela "é uma miúda também desenraizada, é doente, basicamente". Ficam a saber: Cramez vai dar-lhes raiz, corpo, lugar. Vida.

Se quiserem um conceito: "Ele é só exterior e ela é só interior", diz Cramez. O filme é a história do preenchimento de Jota, da saída para o mundo de Margarida. "Precisam um do outro, complementam-se". Jota e Margarida existiram, e complementaram-se até à morte. Mas em "O Capacete Dourado" o trajecto deles é outro: a morte vem ao início, no fim eles vêem (literalmente) estrelas.

A primeira coisa que têm de saber é que a história de "O Capacete Dourado" é "obviamente o arquétipo de Romeu e Julieta, é a história clássica do "boy meets girl - let"s go all the way", nas palavras de Jorge Cramez. Isto no filme acabado - porque no guião o que havia era "o oposto do Romeu e Julieta", diz Rui Catalão, argumentista do filme, a meias com Carlos Mota, a partir da Roménia, onde hoje vive. A história que aqui contamos não é apenas a história deste improvável par, muito menos a do improvável par inspirador do filme - já que a história central de "O Capacete Dourado" é anterior ao filme, anterior ao guião, e vem das infernais páginas d""O Crime".

A história que queremos contar é também outra: a da paixão de um realizador, que chega tarde ao grande cinema, por dois actores. Depois da conversa com o realizador, podemos arriscar: o Jota e a Margarida do filme podem ter-se apaixonado, mas Jorge Cramez apaixonou-se por eles, pelos rostos (magníficos) deles durante as filmagens. Talvez mais por eles do que pelas personagens reais.

O encantamento

"A história inicial em que eles [Catalão e Mota, argumentistas] se basearam é verídica, a de um casal, uma menina de 15 anos e um puto de 18, de Guimarães. Eles namoravam sem o consentimento dos pais da rapariga, porque achavam que o puto era de uma classe mais baixa que eles - e um dia (nunca vamos saber o que aconteceu) saíram das aulas, passaram num bar onde provavelmente passariam todos os dias, sentaram-se a uma mesa, beberam sete cervejas e depois foram-se embora. No dia seguinte ele acordou em casa cheio de lama."

A citação acima, de Jorge Cramez, é, grosso modo, a notícia que ele leu no jornal "O Crime", anos depois do acontecimento, anos depois do guião estar escrito. Em comum com o casal do filme há a questão da diferença de classes, a província e pouco mais. Esse pouco mais é o mistério que atravessa aqueles corpos, algo de magnético e impossível de converter em palavras, uma espécie de encantamento.

A notícia foi lida após a epifania que o levou a querer fazer o filme. Ele estava sentado numa sala de cinema em Cannes e encantou-se por uma história, embora não a que estivesse a passar na tela. A curta de Cramez, "Venus Velvet", foi à semana da crítica em Cannes, no ano de "Elephant", o filme de Gus Van Sant que retrata os crimes de Columbine perpetrados por adolescentes à deriva. Cramez voltava no domingo e queria ver os filmes todos premiados, por isso levantou-se às oito da manhã, enfiou-se no cinema e viu de enfiada uma série deles (e depois foi apanhar o avião). Mas aí já estava enfeitiçado. A citação seguinte permite perceber que ainda hoje não sabe bem o que o atingiu, ainda hoje tem dificuldade em dar ordem aos pensamentos. "Eu não sei porquê, foi durante a projecção do "Elephant", sabes?, não tem explicação, pensei para mim mesmo "Bem, mas isto...", e foi assim um "vaipe", pensei: "Capacete Dourado". Agora não sei se teve a ver com a escola, com os putos." No regresso a Portugal Cramez foi imediatamente à procura da notícia que dera origem ao guião, que estava escrito "há quatro ou cinco anos". (Na realidade, desde 2002.) Tinha sido feito para concorrer ao projecto da SIC dos telefilmes. "Lemos aquela notícia, na altura em que se falava do processo em tribunal", conta Catalão. "Mas a história do filme é uma ficção completa, a única relação seria o momento em que eles decidiam suicidar-se". Este é o ponto que faltava na descrição acima: algures entre o momento em que o casal deixou o café e o momento em que o rapaz acordou em casa cheio de lama, o par tentou suicidar-se, por enforcamento, junto a um rio.

Cramez: "O que é que aconteceu? Não sabemos. Supomos que foram para uma ponte, puseram uma corda ao pescoço, lançaram-se, o nó dele não estava bem feito, caiu ao rio, safou-se, foi directamente para casa e acordou com lama. A história veio para os jornais porque ele foi acusado de homicídio involuntário, uma história mais ou menos mediática em 2000, 2001."

Na versão de Catalão e Mota, no guião inicial, "eles tentavam-se enforcar numa árvore" (Catalão). Mas isso foi antes da segunda epifania de Cramez. Importante - e não querendo reduzir a tragédia real a um "fait-divers" - é a diferença de visão entre os argumentistas e o realizador. Rui Catalão: "O que me chamou a atenção foi - note-se que há dezenas de tentativas de suicídio de casais - ele salvar-se e ficar com a responsabilidade de a ter morto. E daí nós termos criado um passado de morte para o Jota e de o fazermos caminhar para a morte".

O interesse de Cramez é diferente: "O Jota é um tipo sem interior, e a Margarida é uma moça sem exterior. E é aí que eles se vão reconhecer, se um não tem interior e a outra não tem exterior, vai ser por aí que eles... não é eles, sou eu enquanto construtor de uma história... E agora perdi-me." O pormenor importante aqui não é ele perder-se ao pensar neles, ou a visão do que cada uma das personagens é - é aquele "sou eu enquanto construtor de uma história". É que o filme é, também, a visão de Cramez do amor. "Um amigo, depois de ver o filme, mandou-me um SMS a dizer que eu era o último dos românticos", confessava, de olhar vago no jardim da produtora Madragoa. "Guardei o SMS".

Mozos, Villaverde, Costa, Leitão

Primeiro está escuro, depois surge a luz, várias pequenas luzes, os faróis das motos - não sabemos de quem. Há o acidente de automóvel e depois corte para o dia, para a moto (guiada por um rapaz de capacete dourado) a entrar pelo pátio da escola, depois pelos corredores da escola. O puto (Jota) é chamado ao director, representado pelo realizador Manuel Mozos. Pelo filme vão estar espalhadas mais piscadelas de olho ao cinema nacional: Ana Moreira é trazida para o filme por Teresa Villaverde, Alexandre Pinto surge no papel de confidente de Jota, Joaquim Leitão surge no salão de "snooker". Não é apenas o filme que se aproxima da ideia de filiação, o próprio filme filia-se num certo cinema português.

"É uma homenagem", assume Cramez, mas não é a única. "A primeira vez que se vê o rosto do Jota", lembra Carlos Mota, "a primeira vez que ele tira o capacete, vemo-lo a levar uma estalada do pai". (E aí está logo uma personagem inteira, o seu alheamento das regras sociais já está completo.) Aí Cramez faz rima com um célebre plano de "Sangue", a primeira obra de Pedro Costa (igualmente sobre a adolescência, como, de resto, a estreia de Villaverde). E há "dois ou três planos que são claramente da Teresa Villaverde - o plano da Margarida, picado, junto ao rio. O da ponte, quando ela passa. Aquele plano quando ela vem à janela", que faz rima directa com o clássico de Shakespeare.

Mais filiação: num filme cuja ideia inicial, se bem se recordam da declaração de Catalão, se centrava no conceito do destino, não deixa de ser irónico que o pai de Jota seja mecânico (e mais irónico isto se torna ainda quando Jota confessa a Margarida uma tragédia passada). E ainda mais filiação: aquele Jota é uma aparição, um cometa de ar de desafio e marginalidade na pele, em guerra com o pai, os professores, gente do salão de "snooker", todos menos o amigo Rato. O James Dean do Cramez-Nick-Ray.

Cramez assume a herança logo na escolha de Eduardo Frazão para protagonista: "Tem ar de desafio e ao mesmo tempo é frágil, e às vezes é andrógino." E assume a herança de Ray: "O que eu queria era Technicolor. Queria Scope e Technicolor. Tentei, olhei para a imagem do "Rebel Without a Cause" [de Nick Ray, com James Dean], e mostrei à Inês [directora de fotografia]: "Conseguimos estes vermelhos?" Mas depois eu queria filmar em Fuji e não consegui, filmei em Kodak por questões de produção. Mas mesmo assim há momentos em que estou muito perto - a cena da pesca podia ser um filme americano da década de 50, com a camisa vermelha do puto e o verde e as nuvens. Era por aí."

Isto aqui é Portugal

Era por aí, isto é, pela América-Vila Real (cidade onde o filme foi rodado). Porque "O Capacete Dourado", das duas uma, por muito que deva a Ray, ou é "um filme muito português" (Mota), ou é um filme "muito português" (Catalão). Português e classe média: é um filme sobre as classes, em que o pai de Margarida impede a filha de namorar com o rapaz que é filho do mecânico e é mau aluno. E é português em cada obsessivo pormenor: nos caixilhos de alumínio das janelas, na quinquilharia da garagem de Rato, na frieza do salão de "snooker", na reprodução da "Última Ceia" em relevo de estanho na sala dos pais de Margarida, no vernáculo dos miúdos. Cramez: "Tive muito cuidado no trabalho com os actores, nos diálogos. Por isso às vezes aquilo parece muito seco. Mas, se fores ver, num jogo de "snooker" as únicas palavras que os putos dizem são mesmo "Foda-se", "Caralho", "Merda", "Bejeca".

Por isso não valia a pena estar a fazer poesia - aquilo é um jogo de "snooker", e é assim que é". Esse cuidado com o realismo dos detalhes (num filme que nada tem de "realista") era obrigatório: "O plano do pequeno-almoço [da família de Margarida], não imaginas o tempo que levou - tudo o que vês à volta, os quadros, etc, eu estive para aí meia hora a espreitar e mexer uma coisinha, a reprodução, as coisinhas coladas no frigorífico que nem vês, a pôr e a tirar."

É um dos méritos do filme, fazer com que cada personagem, mesmo que apenas surja uma ou duas vezes, tenha "fisicalidade", corpo, algo para além de uma mera aparição. Catalão: "Uma coisa boa no filme é que todas as pessoas que só aparecem uma vez imprimem algo na vida do Jota - numa terra pequena todas as personagens têm importância. Só quem já viveu numa terra pequena sabe isto: todos fazem parte das histórias dos outros." Resumindo: "O Capacete Dourado" é também um filme sobre um Portugal raramente tratado com justeza na arte: a província. Cramez: "Se fores para as cidades grandes do interior, mistura-se tudo um bocado. Nos meus tempos de adolescente em Vila Real as pessoas andavam todas juntas."

As estrelas

Margarida tinha surgido pela primeira vez no filme apenas pouco antes dessa cena do pequeno-almoço. Vemo-la a olhar o rio, a passar a ponta, observada pelos amigos de Jota. Ela desce até ao rio e os rapazes empurram-na para a água, numa atitude de pura sacanice. E é Jota (que também andava por ali) que a salva, com dificuldade, pois ela é maior do que ele, o que realça a fragilidade do rapaz. "A partir do momento em que eles se conhecem, o filme é um trajecto iniciático. É recomeçar qualquer coisa. Há um plano que eu gosto muito, que é muito rápido, que é o plano do fogo, quando a Margarida e [o reflexo de] o capacete se cruzam [no pára-brisas do automóvel]. E, a partir daí, o filme é outra coisa. E começa tudo no fogo."

"A partir daí, o filme é outra coisa", diz Cramez, outra coisa que ele não sabe se é perdição, "no sentido da fuga", ou "redenção, no sentido de poder chegar a outro nível". Seja o que for, é um amor cúmplice, em que pouco é dito, e pouco é mostrado. "É uma história de amor e não há um beijo, há um beijo soprado, perdido logo no início da sequência da festa. Isso é uma coisa que inquieta muita gente."

Nem por um segundo se tenta "psicologizar" aqueles miúdos, entender o que passa naquelas cabeças, como se aproximam. (Cramez: "Há um lado quase de pudor na relação dos dois.") Tudo é deixado no reino das suposições. Isto "não é assim por pudor, é que eu tenho medo". "Psicologizar" os miúdos "podia prejudicar um bocado a coisa". Até porque Cramez não tem "a certeza de os conhecer assim tão bem". O máximo que ele pode propor "é um olhar. Mas acho que a verdade está lá. A minha verdade. Mas não, não tem psicologia nenhuma. E acho que a história está lá sem isso."

Cramez teve a segunda epifania: apaixonou-se por este casal que não podia perceber. Talvez tenha admirado neles uma marginalidade que marca também o seu percurso no cinema. A dada altura, percebeu "que nunca poderia acabar o filme com um enforcamento" porque sentiu que ele próprio "não percebia o que é que leva duas pessoas a pôr uma corda ao pescoço". "Nunca vamos saber o que é que faz com que duas pessoas se sentem e decidam: "Bom, vamos ver as estrelas". Se há metáfora gritante no meu filme, é que eles vão ver as estrelas, mas vão ver as estrelas mesmo".

Numa das mais comoventes cenas do cinema português dos últimos anos, após a festa, após a sobreposição de uma canção dos Echo and The Bunnymen ao rosto de Margarida, o céu fica raiado de luz. Começa no fogo, acaba com estrelas, o céu raiado. No fim, há uma estrada.

Há quanto tempo não se filmava o amor assim?

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