O Oriente é já aqui

Martim Moniz, China. (Ou Nova Iorque, dependendo do enquadramento.) Uma família chinesa em Lisboa: a rapariga, como uma chinesa moderna, quer partir e acreditar noutras coisas. Tem Manhattan, Nova Iorque, escancarada na parede do quarto e os Pop Dell"Arte nos ouvidos; o marido (de quem se ouve só a voz) insiste em falar chinês, em conservar as tradições; o filho, esse dá tiros com a imaginação como se estivesse nos "thrillers" acrobáticos que o realizador John Woo, inspirado pelos "thrillers" americanos e franceses, realizou em Hong Kong.

Anuncia estas personagens um "rap" feito na América por quem inventou o estilo "chinked out": síntese de Ópera de Pequim e "rap" americano, condensa nos minutos de uma canção as 12 horas de um poema clássico chinês chamado "Besides the Plum Blossom", contemporâneo de Shakespeare.

É mesmo, mesmo aqui, Martim Moniz, China. (Ou Nova Iorque, dependendo do enquadramento). "Era mesmo isso que queríamos. Não estamos na China da China, e estamos também em Nova Iorque. Vestimos todos a mesma roupa, ouvimos todos as mesmas músicas", diz João Rui Guerra da Mata, que nos explica tudo sobre esse "rap" versão "chinked out". O "era mesmo isso que queríamos" de há pouco refere-se ao momento em que, em Banguecoque, Tailândia, João Rui ouviu Lee Hom, nascido há 30 anos em Nova Iorque, de origem asiática mas não falando mandarim nem cantonês, e que cantou/declamou o seu "rap" por aproximação fonética. Era a canção certa para "China, China", a curta-metragem de que Guerra da Mata é autor, com João Pedro Rodrigues, sobre a tal rapariga chinesa do Martim Moniz que quer partir, como a Dorothy do "Feiticeiro de Oz", e seguir "the yellow brick road".

Eles, João Rui e João Pedro, seguiram o caminho até ao Martim Moniz. Que é seguir em muitas outras direcções - não por caso, ali há um hotel chamado Mundial. "O Martim Moniz é o sítio onde vamos às compras. É o sítio mais cosmopolita de Lisboa, urbanisticamente feio, mas um sítio verdadeiro: imensa mistura de raças, gente em condição legal e ilegal, pessoas que querem viver, que precisam de sobreviver. É o único sítio de Lisboa onde há cheiros que me fazem lembrar Macau", reconhece João Rui. "Mas há pessoas que ainda se sentem ameaçadas por ir ao Martim Moniz. Que fica ali ao lado do Rossio", completa João Pedro.

A vivência e a ficção

Um parêntesis biográfico é, então, necessário. Explica muita coisa, já que a memória foi decisiva para chegar a "China China". João Rui viveu quatro anos em Macau, tinha 10, 11 anos. Daí regressou, depois do 25 de Abril. Hoje é um fascinado pelo Oriente. Em qualquer cidade do mundo cumpre o ritual de procurar a Chinatown possível, e colecciona "chinoiserie" - como ele diz: "quinquilharia". Foi João Rui o responsável por tornar uma casa pombalina onde "China China" foi filmado numa "casa habitada por chineses": as "instalações eléctricas todas exteriores" ("recordava-me disso de Macau"), aquela cozinha, aquele altar "feito de acordo com os altares budistas" e com incensos vindos "de um templo budista, benzidos", "Parte da minha infância foi passada a ver filmes em mandarim, que não percebia, tinha de inventar eu próprio as histórias, filmes da República Popular da China e cinema de género de Hong Kong, como filmes de Bruce Lee [artes marciais]", diz.

João Pedro Rodrigues não tem a Ásia na sua experiência de vida. Mas tem a Ásia na sua experiência cinematográfica. "As coisas mais originais [em termos cinematográficos] vêm da Ásia. É uma espécie de voltar a acreditar nas imagens, no sentido mais primitivo delas, no sentido de [D. W.] Griffith. Foi o que senti com o "Vive l"Amour", do Tsai Ming-liang". Ah!, Tsai Ming-liang, e o seu filme de 1994 que é uma história de amor para os que o viram. Com o realizador malaio que se revelou internacionalmente a trabalhar em Taiwan João Pedro sente um efeito de reconhecimento, a razão, afinal, por que "China China" passa em complemento a "O Sabor da Melancia", o penúltimo filme do realizador de "Vive l"Amour" e "O Rio" que já está nas salas. "A primeira vez que vi um filme dele, senti que era dos cineastas de quem me sentia mais próximo. Uma coisa muito física, muito táctil, nas imagens. Até nos sons. Faz-me lembrar o [Robert] Bresson. Tem um lado [Jacques] Tati, burlesco. E as histórias são muito minimais. Se calhar isso pode levar a uma espécie de esgotamento no cinema dele" (sim, é um risco que o cinema de Tsai vem correndo, mesmo quando inventa, como é o caso de "O Sabor da Melancia", hipóteses de números musicais para tentar sair do seu círculo vicioso; mas dizemos a João Pedro que há boas notícias: o último filme do cineasta, "Não Quero Dormir Sozinho", editado entre nós em DVD, é uma espécie de refundação do seu cinema).

Sobre o fascínio ocidental pelo cinema oriental - que "pode estar a fazer mal ao cinema asiático, leva ao acomodamento, ao exotismo, à preguiça total, como acontece nos últimos filmes de [cineasta de Taiwan] Hou Hsiao-Hsien" - João Pedro fala por si. "É o não haver medo da vulgaridade, do "kitsch", da candura" - e vêm à conversa as câmaras lentas e as pombas brancas a esvoaçar nos filmes de John Woo, cineasta que é citado, com o seu "The Killer", em "China, China". "É isso que atrai as pessoas, porque o cinema em geral parece não conseguir sair hoje do patamar do bom gosto. Eu também tenho medo da vulgaridade, mas se calhar as coisas têm de ir por aí."

E remata aquele para quem a Ásia é experiência de ficção: "A minha vontade é ir lá." Há-de ir. Falamos de sensualidade, de corpos diferentes dos que estamos habituados a ver no cinema americano, que detém o património figurativo, que é a norma. João Rui adianta-se, e sintetiza. "O cinema chinês sempre teve censura. A Revolução Cultural, por exemplo, homogeneizou a arte e a vida. Por isso tiveram que tornar os filmes eróticos, para que pudessem exprimir alguma coisa. Mas é um cinema pudico, mesmo quando é violento como o cinema de Hong Kong. Não sei que efeito é que isso produz nos espectadores orientais, mas nós, ocidentais, estamos tão habituados à exposição dos corpos que por isso o cinema oriental se tornou hoje mais erótico." É isso, então: o que hoje é capaz de nos fascinar é o que nos escapa? "A Ásia ainda é o sítio onde não nos entendem quando falamos em inglês. Mesmo estando lá a iconografia toda, os McDonald"s, mesmo sendo o retrato de globalização. O Big Mac é ali um Big Mac, mas os asiáticos ficam à toa quando dizemos que queremos um Big Mac." "A minha vontade é ir lá", dizia há pouco João Pedro, o realizador das longas-metragens "O Fantasma" e "Odete". E é ele que anuncia que a memória asiática formada pela ficção (a dele) e a memória do Oriente construída pela vivência (a de João Rui) vão correr em paralelo num próximo filme, um documentário.

"Vamos filmar o regresso do João Rui a Macau. Vamos filmar o confronto com as memórias dele, memórias de vivência, e o confronto com as minhas memórias, de ficção, construídas pelo cinema asiático e também pela forma como Hollywood ficcionou o Oriente." Devem estar a perguntar, neste momento, o que é feito da rapariga chinesa do Martim Moniz... Sem querer trair a "caixinha de surpresas" que é "China China", podemos dizer que ela segue mesmo "the yellow brick road".

DESTAQUE:

"A primeira vez que vi um filme de Tsai Ming-liang, senti que era dos cineastas de quem me sentia mais próximo. Uma coisa muito física, muito táctil, nas imagens. Até nos sons. Faz-me lembrar o [Robert] Bresson. Tem um lado [Jacques] Tati, burlesco. E as histórias são muito minimais" João Pedro Rodrigues

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