Manobras de patinagem

É possível não se gostar de um filme que coloca dois ex-campeões de patinagem artística na categoria de singulares homens a formarem um par para poderem contornar a sua exoneração das competições e regressar ao que melhor fazem? É possível não se gostar de um filme que fura finalmente o balão politicamente correcto da patinagem artística com uma sucessão de ferroadas bem sacadas? É impossível a todos aqueles que cresceram a ver as transmissões em directo da patinagem artística no segundo canal não gostar de "A Glória dos Campeões". Mas é possível sentir um tudo nada de desilusão por o resultado da estreia na realização da dupla publicitária Will Speck & Josh Gordon ficar aquém do que se esperaria quando a "vedeta" de serviço é o novo homem forte da comédia americana, Will Ferrell.

Não há, atenção, nada de mal com "A Glória dos Campeões". O mundo da patinagem artística é aqui tratado com o mesmo carinho com que, por exemplo, o mundo das corridas de "stock-cars" era retratado em "As Corridas Loucas de Ricky Bobby"; o filme navega no mesmo limbo entre a sinceridade inocente, a sátira afectuosa e a idiotice deliberada que é marca registada da nova comédia americana; e, ao mesmo tempo, fazse pouco (ainda e sempre com afecto)das regras chapa-quatro que Hollywood aplica aos filmes de desporto em que o herói paga o preço da sua ambição e mergulha nos abismos da depressão e do vício para triunfar sobre as suas fraquezas e os seus concorrentes. Tudo ao mesmo tempo que se faz um poético elogio da amizade e das sãs virtudes dacompetição amigável e da camaradagem, que no caso específico envolve manobras de patinagem (como a infame e ameaçadora Lótus de Ferro) que só dois homens poderiam fazer sem correrem o risco de serem ridicularizados como efeminados, apesar de usaremmalhas justíssimas de motivos decorativos que não lembrariam ao diabo.

Existe, evidentemente, uma trama, mas é apenas pretexto mecânico para justificar vermos rotinasimpossivelmente "kitsch" de patinagem de pares entre um Will Ferrell armado em gebo machão sobre-excitado e um Jon Heder (a revelação do culto-DVD "NapoleonDynamite") de caracóis louros platinados que faz dança interpretativa ao som de Andrea Bocelli. "A Glória dos Campeões" convence-se de que não é precisomais nada para fazer uma boa comédia - e quase tem razão, porque Ferrell e Heder são uma inspiradadupla cómica que só por si carrega o filme sem esforço, mas mesmo a mais inspirada dupla cómica precisa de algo mais do que vontade para sustentarum filme.

Convém, por exemplo, um guião - que é o que falta, substituído por uma série de lugares-comunsriscados da lista à medida que são usados - ouum pouco mais de empenho directorial - que também não há, limitando-se à funcional ilustração do guião que há. Há um casal de vilões de opereta maquiavélicaestupidamente subaproveitado e a já habitual galeria de secundários pisque-os-olhos-e-já-lá-não-estão, háuma genial perseguição em "slowmotion" pelas ruas de Montréal, deliciosos pormenores subversivosespalhados por toda a cenografia e enquadramentos, mas nada disso impede que esta hora e meia apesarde tudo divertida saiba a bastante menos do que devia.

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