Condenado ao culto

Porque é que tão complicado "vender" uma fita de animação que não seja feita a pensar especificamente nos miúdos? As duas experiências animadas de RichardLinklater, "Waking Life" e "A Scanner Darkly", ou os "animes" de Mamoru Oshii ou Satoshi Kon não chegam a sala por cá (vão directos para vídeo, quando vão); o desequilibradíssimo "Imortal", de Enki Bilal, passa razoavelmente desapercebido por cá;mesmo objectos mais híbridos como "A Casa Fantasma", de Gil Kenan, não obtêm o sucesso esperado. Não é decrer que este "Renascimento" venha inverter a tendência. Mas a verdade é que está aqui não só uma experiência formal interessante como um daqueles filmes que vai gerar culto junto das audiências mais "radicais". Por uma razão simples: "Renascimento" consegue conciliar orespeito pela lógica visual das novelas gráficas com uma narrativa cinematográfica sem que nunca ambas estejam desfasadas uma da outra. E consegue criar umaidentidade própria dentro de um terreno cujas matrizes estão já codificadas e são tão fortes quedificilmente se consegue escapar à sua força gravitacional.Traduza-se: por um lado, evoca-se o "film noir" estilizado em cenário de megalópole distópica do "Blade Runner" de Ridley Scott; por outro,invocam-se as preocupações existenciais que Oshii e Kon exploraram nos dois filmes de "Cidade Assombrada" ou em "Perfect Blue"; ali filtra-se a tradição humanista e esotérica da BD de ficção-científica franco-belga, facção Humanoïdes Associés/Enki Bilal; aqui vai-se buscar o "chiaroscuro" contrastado de Will Eisner e FrankMiller. Que, no meio disto tudo, "Renascimento" tenha uma personalidade própria é digno de mérito, tanto mais visível quanto se trata de uma co-produção europeia que estreia entre nós na versão eminglês (o filme foi pensado de raiz para ter duas versões, uma dobrada em francês para os territóriosfrancófonos, outra em inglês com vista aos mercados internacionais, com actores como Daniel Craig, IanHolm ou Jonathan Pryce). E essa personalidade manifesta-se numa abordagem de "film noir" clássicotransposto para uma Paris mutante mas ainda reconhecível em 2054, ilustrada num preto e brancoaltamente contrastado criado em "motion capture" (animação a partir de uma referência de imagem real),numa actualização futurista da inquietação existencial do pósguerra. Nesta Paris dominada poruma sinistra multinacional de cosmética, um detective que busca uma cientista raptada descobre que o seu desaparecimento está ligado a um projecto secreto de pesquisa biogenética e que ele não é o único que a procura - a partir daqui, o guião desenrola um policial clássico sobre segredos e mentiras no mundo da espionagem industrial, dobradode esboço de meditação sobre a atracção da imortalidade.

Não se pode dizer que a narrativa seja original, mas o mérito de Christian Volckman e da sua equipa é o de fazer esquecer a componente formulaica através da perfeita adequação da estética, da inteligência e da riqueza do trabalho visual, tanto mais notável quanto uma paleta cromática tão limitada poderialevantar reservas e fraquezas. Nada disso: "Renascimento" é uma surpresa tanto mais conseguida quanto o seu próprio estatuto de produção europeia faria desconfiar de um produto "mal acabado". Mal acabado não é de certeza; pode não ser perfeito, mas essa é a sua própria mensagem: a perfeição é uma chatice.

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