O sexo e a cidade

Houve uma altura - por causa de "Garganta Funda" - em que houve quem sonhasse que o cinemapornográfico se tornaria numa forma " aceitável" de cinema "mainstream", que o sexo explícito seria apenas mais uma ferramenta ao serviço dos cineastas. Essa utopia libertária nunca passou de visionarismo entusiasmado. Mas, mais de 30 anos depois, "Shortbus"está aí para provar que a ideia de integrar o sexo num filme "sério" não era tão descabida quanto isso,desde que concebida nas condições ideais de temperatura e pressão. Que, no caso, correspondem a uma Nova Iorque pós-11 de Setembro visualizada por um Woody Allen "indie" que aliasse às suas neurosesurbanas um curso intensivo de terapia sexual e uma aprendizagem no teatro independente off-Broadway. Se isto não parece estar a fazer sentido, "Shortbus" é uma comédia optimista, terna, contagiante e viva sobre um grupo de nova-iorquinos neuróticos embusca da felicidade, com muito sexo explícito das variantes homo, hetero e fetichista, em várias combinações. Nada que se recomende a alma sensíveis ou puritanas - mas são elas quem fica a perder, porque "Shortbus" não é um filme porno.Para resumir um pouco, temos uma terapeuta sexual que tem um marido de sonho e um casamento feliz mas é incapaz de ter orgasmos, um homossexual suicida que se sente incapaz de amar apesar do namorado o amar profundamente, uma artista "dominatrix" que estácansada do fetichismo e apenas quer levar uma vida normal e fazer festinhas ao gato. Todos eles sãointerpretados por actores não profissionais que desenvolveram o guião e os diálogos em colaboraçãocom o realizador John Cameron Mitchell. Todas estas personagens sublimam no sexo o que falta nas suas vidas: uma ligação, um contacto, uma corrente emocional. E procuram-na no Shortbus, equivalente pansexual dos velhos salões boémios definido como "igual aos anos 60, só que com menos esperança". O sexo não é o essencial em "Shortbus": é uma parte como outra qualquer da nossa vida, usadacomo ferramenta para contar a história de gente em busca de si mesma e do seu cantinho no mundo.

Poder-se-á dizer, com alguma razão, que John Cameron Mitchell não é o realizador mais inspirado do mundo. Mas também não precisa de o ser, porque esta história não depende de truques de câmara ouestilismos - basta que haja espontaneidade, que estaspersonagens respirem, que a emoção passe para o espectador. É isso que ele consegue: que reconheçamos esta gente como igual a nós, com os nossos problemas quotidianos que também se reflectem no sexo. Poder-se-á também dizer que há algo detransgressão provocatória em "Shortbus" - e quem sabe que Mitchell é o autor/actor de "Hedwiga Origem do Amor" (2001), comédia musical transsexual sobre a procura da felicidade que passou de triunfo nos palcos off-Broadway a um óptimo filme de culto, já o esperaria. Mas essa transgressão é tudo menosgratuita. Por paradoxal que pareça, este é um filme contagiante e celebratório sobre a redescoberta dainocência que existe dentro de cada um de nós, daquilo que nos faz realmente mover. E que, como jádevem ter percebido, não é o sexo.

Sugerir correcção
Comentar