Alma de série B, espectáculo de série A

Ainda é possível fazer-se um filme de ficção científica que seja, ao mesmo tempo, completamente derivativo e terminantemente novo? Que reaproveite ideias de filmes anteriores mas dê a impressão de nunca ter sido feito? Visto "Missão Solar", a resposta é terminantemente positiva: Danny Boyle realizou aqui aquilo que tentou, sem conseguir, fazer ao filme de zombies no inteligente "28 Dias Depois". De novo trabalhando com o romancista Alex Garland, assina com "Missão Solar" um filme com alma de série-B e espectáculo de série-A, uma enorme manta de retalhos com uma extraordinária coerência, um pequeno triunfo visual, conceptual e narrativo - em suma, aquilo que Hollywood devia ainda saber fazer mas só muito raramente consegue. E, para isso, nem foi preciso puxar muito pela cabeça.<p/>

"Missão Solar" é o equivalente de um daqueles computadores feitos em casa por carolas que canibalizam partes de outros computadores maisantigos ou as compram separadas na loja de ferragens. A "Armageddon" e "Impacto Profundo" vai-se buscar a ideia da missão da última oportunidade para salvar a humanidade - no caso, uma tripulação enviada em direcção ao sol moribundo, para detonar uma bomba que reacenda a estrela. "Solaris" fornece a ideia da desorientação que a proximidade daestrela causa nos tripulantes; "O Enigma do Horizonte" a ideia de uma missão anterior, falhada, que dá a conhecer a sua presença perto do objectivo; "Alien, o Oitavo Passageiro" o "jogo das cadeiras" que vai eliminando a tripulação; "Alien 3, a Desforra" o subtexto (deixado por aflorar) de umaepifania religiosa no espaço profundo. O monstro deFrankenstein assim criado é trabalhado como se fosse uma velha série B económica: o que ficou para trás não interessa. O sol está a morrer, e é preciso fazer qualquer coisa. Há oito pessoas fechadasnuma nave que é a última esperança da humanidade. As coisas começam a correr mal. Resume-se tudo nestastrês frases e na pergunta que falta: o objectivo da missão será atingido?

Antes de responder, Boyle fecha a panela de pressão sobre o espectador, aperta os parafusos bemapertados, constrói minuciosamente o ambiente e a tensão. Estamos fechados dentro daquela nave comaquelas oito pessoas; não sabemos de onde é que elas aparecem, quem são, quais os seus problemas, e issonão interessa nada para o efeito final. "Missão Solar" é um filme de uma claustrofobia esgotante, sabe o que quer e como lá chegar, não perde tempo a inventar, e a partir de certa altura atira drogas de boa qualidade para o cozinhado (bastará dizer que é um filme que se coloca do lado da racionalidade científica contra o fundamentalismo religioso,ao mesmo tempo que se pergunta qual o efeito alucinatório da luz em estado puro). Fá-lo com uma pulsão quase ofensiva de criar, mais do que um filme, uma experiência sensorial - um pouco como Boyle fizera no seu filme-charneira, "Trainspotting", que procuravacolocar o espectador no corpo de um drogado, fazê-lo sentir os picos e os abismos da experiência. Agora,naquele que é muito provavelmente o seu melhor filme, Boyle coloca o espectador dentro da nave,confronta-o com a loucura de partir numa missão quase kamikaze em nome da humanidade, com aarrogância de achar que se pode operar a natureza do universo; mas fá-lo dentro de uma estrita fórmulade cinema de género, atendo-se às regras codificadas - é um filme que será tanto mais eficaz quanto mais se conhecer da história da série B eda ficção científica, mas que sobrevive perfeitamente sem esse conhecimento - e com ovirtuosismo quase insultuoso de quem sabe que está a reciclar peças de Legos que tinha lá em casa paracriar um modelo completamente novo. "Missão Solar" faz novo do velho e isso, hoje em dia, é quasemilagroso.

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