Pára-raios incendiário

Ele houve a eleição de Salazar nos "Grandes Portugueses" e o cartaz do PNR no Marquês de Pombal, ele há a tentativa dos candidatos de centro-esquerdaàs presidenciais francesas em reconquistar o território nacionalista perdido há anos para LePen. Agora, chega "300", fita desenhada de raiz para reacender a urticária liberal que há em nós,relançar todas as polémicas sobre fascismos, reaccionarismos, libertarianismos e outros -ismos doséculo XX e, de caminho, fazer bilheteira que nunca mais acaba (como já aconteceu nos EUA, onde é um dos triunfos comerciais do ano). Espécie de "cocktail Molotov" lançado por um miúdo a brincar aosterroristas, "300" já levou a protestos iranianos (contra a descrição dos persas como um povodecadente e malsão), suspeitas de ser uma "encomenda" da administração Bush (apesar da suafidelidade à BD de Frank Miller e Lynn Varley que lhe é francamente anterior) e acusações de fascismomilitante. Tudo isto por causa de uma versão mais ou menos livre mas politicamente incorrecta de umepisódio da antiguidade clássica, a Batalha de Termópilas, em que 300 valorosos soldados de Espartaresistem heroicamente às hordas invasoras da Pérsia. "300" é ao mesmo tempo elogio totalitarista eparadoxalmente idealisticamente liberal das virtudes masculinas e marciais, e exposição de video-jogotransformado em "tableaux" de acção e cinema de vanguarda.OK, mas é um bom filme?

As coisas não são assim tão simples.

"Remake" por interposta BD dos "300 Espartanos" (1962) de Rudolph Maté, segue nas pisadas doinjustamente menosprezado "Sky Captain e o Mundo do Amanhã" (2004) de Kerry Conran, e de "Sin City - A Cidade do Pecado" (2005) de Robert Rodriguez e Frank Miller na construção digital do seu universo. Zack Snyder (autor do excelente "O Renascer dos Mortos",2004, "remake" inteligentíssimo do "Zombie" de Romero) filma actores reais e coloca-os emcenários digitais barrocamente pictóricos, cheios de referências à antiguidade clássica e à história dasBelas-Artes e do cinema, ao mesmo tempo que desenrola a acção de acordo com uma lógica visual devideo-jogo elaboradamente coreografado como um "wu xia pian" [cinema de artes marciais] de Hong Kong. Ou seja, pega num filme de género (o "peplum" histórico) para o retrabalhar de acordo com asnovas coordenadas do cinema de acção e aventura contemporâneo, sem por isso perder a ligação com asimplicidade maniqueísta dos grandes clássicos. Goste-se ou não, este é um filme de quem tem umprojecto visual consistente - mais do que narrativo, já que "300" parece existir apenas para os seuscombates sangrentos, perdendo gás e interesse quando a acção se transfere para os jogos políticos quedecorrem nos bastidores.

Ora, é precisamente na ausência de projecto narrativo que entronca o problema de "300". Osespartanos que erguem armas contra os persas fazem-no em defesa da sua liberdade e do seu ideal democrático, mas são um povo "ariano" de perfeito corpo musculado e coragem sobre-humana, criado desde criança para a arte da guerra, exaltando as nobres virtudes marciais da honra, do respeito e da glória. E os todo-poderosos persas são imperialistasdecadentes, corruptos e dissolutos, refugiados na arrogância demiúrgica e na superstição, que podem derrotar os espartanos mas nunca os subjugarão. A salganhada de referências permite todas as leituras possíveis, sobretudo sobreposta à guerra do Iraque, àoposição Ocidente vs Islão, ao confronto entre Republicanos e Democratas, etc., etc., etc. Snydersabe que está a brincar com o fogo com "300", tem consciência disso, mas onde termina a ingenuidade ecomeça a provocação, onde é que isto passa de "entertainment" descartável a filme sonso eideologicamente equívoco e mesmo desprezível?

Claro que se, soubéssemos a resposta, não fazia sentido fazer a pergunta - e é uma pergunta queestá a fazer maravilhas pela promoção do filme. Enquanto cinema, em abstracto, "300" é objecto interessante - há um excesso, uma desmesura, umaenergia centrífuga que atraem. Combinada com a questão política, essa energia transforma "300" numpára-raios incendiário: goste-se ou odeie-se, caem lá todos. E não se sai indiferente.

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