O ditador e o seu médico

Os Óscares adoram "números de actor": actores respeitados, vedetas consagradas, que se transfiguram em gente que existiu mesmo ou em personagens nos antípodas da sua imagem pública. Em alguns casos pelo prazer de aperfeiçoar a sua arte, noutros pela vontade de quebrar com uma imagem de marca. E um "número de actor" tanto pode ser um trunfo como um "handicap": pode chamar a atenção para um filme em que poucos reparariam, mas pode também assestar os holofotes sobre um projecto que não sobrevive para lá da "performance" central.

"O Último Rei da Escócia" é bicho que desafia estas lógicas formatadas. Primeiro, porque há de facto aquium daqueles "números de actor" que os Óscares adoram: Forest Whitaker numa interpretação assombrosa como o ditador ugandês Idi Amin Dada. Mas é injusto para o restante elenco que só se fale dela,porque é uma interpretação que se enquadra num "ensemble" onde não há notas falsas; é injusta até para o próprio Whitaker, que anda a terinterpretações assombrosas há anos sem que ninguém repare.

Depois, porque o filme não se esgota no retrato por interposta pessoa de Idi Amin Dada; é uma meditação intrigante sobre a relação complicada entre África e as potências imperiais/imperialistas que antes a haviam colonizado, dobrada de viagem iniciática para um médico cuja inexperiência o deixa intoxicado com as ilusões em que decide acreditar. Finalmente, porque esta estreia na longa de ficção do documentarista escocês Kevin Macdonald (Óscar por "One Day in September", sobre o atentadonos Olímpicos de Munique que inspirou "Munique" a Spielberg) é um filme "entre" gavetas, ficçãoinspirada em personagens e situações verídicas, transposição actualizada para o grande écrã dos"docudramas" de irrepreensível factura britânica que nos habituámos a esperar da BBC.

Não estamos longe de "A Rainha", de Stephen Frears, que aplicava um verniz ficcional a personagensverídicas (o argumentista Peter Morgan assina ambos os filmes): Idi Amin existiu e foi um ditador brutal,mas o médico escocês Nicholas Garrigan é uma criação ficcional, e o filme adapta o romance de GilesFoden que explora a "atracção do abismo" entre o ditador e o seu médico, um jovem que se deixadeslumbrar pelo magnetismo de Idi Amin e só acorda para a realidade do seu regime quando já é tarde demais.

No entanto, é tudo menos um telefilme: a fotografiasaturada de Anthony Dod Mantle, o nervosismo da câmara são cinema, mesmo quando se instala um climade imediatismo documental - sobretudo na primeira hora, que traduz o encantamento de Garrigan ao pressentir o futuro que se pode estender à sua frente. Mas tudo o que sobe tem de cair, e esta étambém uma história do preço que aqueles que quiseram subir demasiado alto têm de pagar - nesseaspecto, Garrigan e a sua ingenuidade que o envolve em situações das quais nada compreende projecta uma espécie de "duplo" de Idi Amin, tão deslumbrado e irresponsável como o ditador ugandês. O médico é oespelho invertido do ditador, e é isso que leva Idi Amin a escolher Garrigan: a cena em que, enquantotrata o pulso torcido do presidente, o médico pega numa pistola e mata a vaca moribunda cujos balidosdesesperados não o deixam concentrar-se. Não há pessoas boas nem más; há só pessoas definidas pelas escolhas que fazem. Ou, como alguém diz a certa altura a Garrigan, "você merece morrer. Mas mortonão serve de nada; vivo, pode ser que se redima".

É essa a outra mais-valia do filme: ser um percurso visceral à volta de um Ocidente que se ingere em África sem saber o que está a fazer e de uma África dilacerada entre a independência e a dependência. Porvezes Macdonald corre o risco de se deixar levar pela adrenalina em vez de se concentrar na história. Mas as questões que "O Último Rei da Escócia" aflora justificam que se lhe dê mais atenção do que apenas por trazer uma grande interpretação de Forest Whitaker. Há casos em que a nomeação para o Óscar é uma espada de dois gumes.

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