O Último Round

Directamente do filme e, veremos, directamente de uma certa década: Rocky Balboa, ex-pugilista a querer ter direito a um último "round" aos 60 anos de vida, enfrenta a condescendência de um próximo (e mais novo) adversário; é qualquer coisa assim: "Só acaba quando tiver acabado", diz o italo-americano.<br/> O outro provoca: "Isso é o quê, um slogan dos anos 80?".<br/> "Punch" do velho pugilista: "Não, é mais dos anos 70".<br/> O outro merecia mesmo ir ao tapete. E o filme já nos agarrou.

O filme é "Rocky Balboa", o sexto de uma série iniciada em 1976 com "Rocky". Depois de "Rocky II" (1979), "Rocky III" (1982), "Rocky IV" (1985) e "Rocky V" (1990), Sylvester Stallone, realizador, intérprete e criador desta personagem de um proletário pugilista de Filadélfia, sem talento especial, mas com coração enorme, porque apanha e logo se levanta para continuar (é o seu lema de vida e, sem ofensa, temos que concordar que é coisa masoquista), não quis fazer "Rocky VI". Se intitulou o filme "Rocky Balboa" foi para colocar as sequelas dentro de um parêntesis e ligar-se directamente ao primeiro filme - recorde-se, a história do sonho americano de um "underdog" que nos meados dos anos 70 se impôs nas bilheteiras e nos Óscares (perante a concorrência de autoridades como Martin Scorsese, Alan J. Pakula ou Sidney Lumet) assim concretizando o sonho (americano) do seu actor/argumentista Stallone.

Este era o homem cuja biografia, na adolescência, indicava que o seu fim mais provável seria "a cadeira eléctrica" - assim foi votado, numa escola especial para onde foi mandado aos 11 anos, o filho de um cabeleireiro e de uma astróloga.

Nasceu tirado a "forceps", o que afectou um nervo facial, paralisou a parte esquerda inferior do rosto, incluindo os lábios, a língua e o queixo, incidente que lhe deu aquele olhar de cão abatido e o falar entaramelado que fazem a sua marca. Não foram poucas as humilhações na idade difícil, imagina-se...

Para percebermos melhor a filosofia que mais tarde se iria espelhar no ecrã, continuemos. Para além de saltitar de casas de adopção em casas de adopção, enquanto os pais estrebuchavam num infeliz casamento, Sly foi um dos muitos e esforçados pretendentes a actor que um dia encontrou um porno ("The Party at Kitty and Stud"s"; mais tarde, quando o actor já era famoso, foi relançado em vídeo como "The Italian Stallion", mostrando na capa um rosto de cão surrado a atingir um orgasmo). À via sacra por pequenos papéis (um Woody Allen do início, "Bananas", de 1971; uma recusa no "casting" de "O Padrinho"...), sucedeu-se a participação na escrita do argumento de "The Lords of Flatbush". Tomou-lhe gosto e, rodeado de carências e depressão, pintou de preto as janelas do quarto de Los Angeles, para não se distrair com o exterior. Em três dias escreveu assim "Rocky", a história de um pugilista - mas menos uma história de boxe do que uma "love story" entre inadaptados, Rocky e Adrian (que era interpretada por Talia Shire).

Depois andou a melgar pelos estúdios. A United Artists queria a história mas não queria o homem como actor (queria James Caan, queria Ryan O"Neal, que eram grandes na época), ofereceu muito dinheiro a Sylvester para se afastar, ele por pouco dinheiro não se quis desligar. O mito ficou dourado com números a sério: "Rocky" foi feito por um milhão de dólares, rendeu 100 milhões. E a história de Rocky ficou para sempre como a história de Sylvester, que se iria tornar o "action hero" de serviço nos anos 80 e 90.

Saltando esse parêntesis, ou seja, os anos 80 e 90, esta é agora a história de "Rocky Balboa": vai ao cemitério pôr flores na campa da mulher Adrian, tem um restaurante onde recebe os clientes que vão à procura de velhas histórias (não é um toiro enraivecido, é um toiro adormecido), tem 60 anos, um filho com vergonha do mundo do pai. Como às tantas lhe diz o cúmplice Paulie (Burt Young), de tanto viverem num mesmo sítio, as pessoas acabam por se parecer com esse sítio. Digamos que a Filadélfia de Rocky não melhorou, é uma ruína. Mas o velho pugilista quer um último "round".

É "Rocky Balboa" a história de Sylvester Stallone?Sim, até mais do que a história de Rocky. E o masoquismo volta a falar alto - já não estamos apenas no lema de vida de um pugilista, como se depreende. Por causa das sequelas que Stallone fez, mas que ele acha que nunca devia ter feito, quando se deixou inebriar pelo sucesso e despachou, para chegar cada vez mais alto no "cachet", o II, o III, o IV e o V - pôs as sequelas entre parêntesis ao chamar ao filme "Rocky Balboa" mas não se esqueceu nem nos deixa esquecer que com elas traiu uma pureza da personagem.

Não acaba aqui a componente cruel da rendição a Rocky: é que por causa dele, Stallone nunca conseguiu ser actor; a sua carreira recheada de Razzies, os Óscares dos maus, é uma tentativa de ser levado a sério que esbarrou sempre na incredulidade ou no sarcasmo dos outros. Rocky é a sua coroa de espinhos. Sim, é como se dissesse, numa exposição sacrificial que abraça o "clownesco" (aquele chapelinho à "little tramp..."): "Isto é o meu corpo, o que é que faço com ele?".

"Rocky Balboa" vem de outro tempo. No cinema americano já quase toda a gente se esqueceu de filmar a noite e as ruas assim, captando a textura do vivido que cobre pessoas e o lixo nos passeios. E já muito poucos são capazes de se interessar pelas personagens e suas hesitações numa esquina qualquer e de se esquecer do "plot". Este, como o primeiro, também não é um filme sobre boxe. Mas mais do que o primeiro, é um filme feito pelo desajustamento - do seu autor/actor. É um auto-retrato de impulso, repentista, com uma coragem de exposição que só pode ser instigada pela solidão - este filme, ao contrário das sequelas de "Rocky", está-se a marimbar para que o vejam ou não, isso é impressionante.

"Isto é o meu corpo, o que é que faço com ele?" também quer perguntar: "Onde é que está o cinema do meu tempo?" (Não é por acaso que "Rocky Balboa" opõe as imagens de um combate virtual, de jogo de computador - o cinema que se faz hoje? -, ao combate real entre Rocky e o adversário.) Digamos que, por aí, não "faz à anos 70". Stallone não é capaz (não tem as artes de um virtuoso, como o são todos, os talentos das novas gerações que citam os 70s). Este filme não traz os sedutores sinais do "hype" deste tempo (em que a moda é construída com sinais de outro tempo). Não podia ser de outra forma. Sylvester Stallone não faz à anos 70 porque "é" os anos 70.

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