Em busca da felicidade: o rapaz do cubo mágico

Há quatro palavras no genérico deste filme que fazem tremer o mais benevolente dos cinéfilos: "inspirado numa história verídica". É o sinal de que entrámos numa zona de areias movediças onde o cinema se aproxima perigosamente do "caso da vida" televisivo e o pacote de lenços de papel espreita por cima do ombro à procura da lagrimazinha marota, onde é demasiado fácil confundir sinceridade com manipulação, onde o "pathos" pode transformar-se em lamechice com um pé mal posto. E "Em Busca da Felicidade" não perde uma oportunidade de despejar infelicidade em cima do seu protagonista: ao longo do filme, Chris Gardner perde carro, mulher, casa, vê-se forçado a ir para a fila dos sem-abrigo com um filho de cinco anos procurar encontrar uma cama para a noite, enquanto de manhã estagia gratuitamente numa poderosa firma de corretagem sem garantias de encontrar emprego no fim do estágio.

Tudo isto aconteceu mesmo, na São Francisco de 1981: Chris Gardner perdeu o carro, a mulher, a casa, viveu nas ruas com o filho. Mas é o exemplo chapado do "sonho americano" em acção: o ex-marinheiro que sempre foi bom com números acabou por ganhar o tal estágio, arranjou emprego como corretor, hoje é milionário. Deveu-se tudo - é aquilo que o filme sugere - a um cubo mágico. Esse mesmo, o cubo de Rubik com seis faces que foi o quebra-cabeças da moda durante meses: se não fosse a persistência em candidatar-se ao tal estágio, se não fosse uma corrida de táxi de 18 dólares em que o taxista ficou a arder mas durante a qual Gardner conseguiu o aparentemente impossível (acabar o cubo mágico) em frente ao director de recursos humanos da corretora, se não fosse a sua fé inabalável em si mesmo...

Ou o cubo mágico como símbolo do "sonho americano", só que contado por um italiano: Gabriele Muccino, realizador de "O Último Beijo" (2001), a fazer a sua estreia nos EUA. Faz sentido: dificilmente um nativo será hoje capaz de filmar o sonho americano desta maneira sem cair na maçada pós-Sundance do realismo sujo nem atolar-se no pântano do xaroposo. "Esta maneira", isto é: como se fosse a primeira vez, conseguindo fazer esquecer que o sonho americano já foi filmado de todas as maneiras e feitios (sem pejo, até, em assumir com naturalidade a existência da pobreza nas ruas das grandes cidades) e ainda por cima cumprindo na perfeição o caderno de encargos da vedeta-produtor Will Smith.

Porque este filme é um veículo milimetricamente concebido à medida de Smith, objectivamente um dos poucos verdadeiros astros globais que Hollywood tem hoje em dia: um actor que concilia a simpatia da crítica e os favores do público, que tomou o controle criativo da sua carreira mas não se limita a fazer valer a carinha laroca. O "Ali" de Michael Mann deu-lhe uma primeira nomeação para o Óscar, "Em Busca da Felicidade" é pensado para fazer valer o (insuficientemente explorado) actor sério que Smith tem em si, ainda por cima a contracenar com o seu próprio filho de oito anos, Jaden Christopher; e aí está, uma segunda nomeação (que poucos esperariam) para o Óscar de melhor actor. Que, percebe-se depois de ver o filme, não passa do reconhecimento da Academia pelo estatuto adquirido nas bilheteiras mundiais, mais do que uma recompensa por uma interpretação notável: Smith é bom (já sabíamos), faz valer o charme e a simpatia, a humildade e o empenho, mas Muccino tem um benvindo pudor em explorar o "número de actor", "trava" a interpretação antes que ela caia no histerismo, extrai a emoção do actor mas deixa que seja a história a comover o espectador. Ganha o filme e ganha o actor - mas nem o papel exige que Smith saia da imagem que já definiu para si próprio, nem o filme quer mais do que fazê-la valer numa história edificante. Não é muito como projecto, mesmo que "Em Busca da Felicidade" o cumpra bem.

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