Olho vivo

OSS 117? O nome não será desconhecido dos apreciadores de cultura pop com mais idade: OSS 117 era o super-agente secreto que o escritor francês Jean Bruce criou em 1949, em actividade ao longo de mais de 200 aventuras em livro (retomadas pela esposa Josette após a morte de Bruce em 1963, e pelos filhos François e Martine entre 1987 e 1992) e de sete filmes realizados em França entre 1957 e 1971. Ou seja, OSS 117, de seu verdadeiro nome Hubert Bonisseur de la Bath, agente secreto americano de antepassados franceses, é um predecessor baratucho de James Bond que foi ofuscado pela criação de Ian Fleming, mesmo apesar de lhe ter sobrevivido.

Agora, façam a fineza de esquecer este intróito, destinado a explicar a ilustre genealogia que o filme que agora estreia por cá, "Agente 117", alegremente desdenha e deita fora. O argumentista Jean-François Halin, o realizador e co-argumentista Michel Hazanavicius e o actor Jean Dujardin, comediante televisivo popular em França, retêm da criação de Jean Bruce apenas o nome Hubert Bonisseur de la Bath, o número de código OSS 117 e a profissão de agente secreto. E, em vez de uma série Z de espionagem semi- "trash" e fora de moda, temos uma deliciosa comédia erguida em sátira certeira aos filmes de espionagem dos anos 60: imaginem 007 revisto pelo agente Maxwell Smart (da série "Olho Vivo") e conseguem ter uma ideia do que aqui se passa.

Mas é só uma ideia, porque "Agente 117" desmonta com requintes de malvadez os clichés do género e as atitudes colonialistas, imperialistas, sexistas e geralmente ingenuamente patrioteiras subjacentes aos filmes da época - e não só. Transformado em super-agente dos serviços secretos franceses em meados da década de 50, OSS 117 é aqui enviado ao Cairo para investigar o assassínio de um outro agente (e seu melhor amigo) e procurar impedir a revolução que se anuncia na capital egípcia, verdadeiro ninho de espiões onde se pode jogar a aliança entre o mundo ocidental e o mundo árabe. Jean Dujardin interpreta OSS 117 como um Bond decalcado do modelo Sean Connery mas em versão bronca, representante de uma potência colonial decadente que ainda acredita poder manter o seu império de pé mas que nem sequer tem a noção de que administra uma civilização anterior à sua própria cultura dita ocidental. Grande parte do humor do filme, precisamente, nasce desse desfasamento entre o estatuto supostamente "primeiro-mundista" do espião cosmopolita e sedutor e a sua realidade como um pateta distraído, convencido e egocêntrico que percebe tanto do mundo árabe como o vulgar transeunte de física quântica; muito do filme é comédia de situação clássica dos tempos do burlesco, só que ganha pela elegância com que Dujardin se atarefa a provar que OSS 117 é um bronco perfeitamente inconsciente de o ser, que persiste alegremente na sua grande ilusão.

Só isso já chegaria para justificar o interesse, mas há mais - há, sobretudo, a noção de que "Agente 117" não é uma mera paródia descartável, mas uma sátira afectuosa de quem gosta do género. A notável fotografia de Guillaume Schiffman restitui intactos os cromatismos tão típicos dos filmes dos anos 50 e 60; o delicioso genérico pop de Laurent Brett faria Maurice Binder ou Saul Bass aplaudirem; a música de Ludovic Bource e Kemal El-Cheikh é mais "sixties" que os "sixties", eles próprios; e Bérénice Bejo e Aure Atika são notáveis "Bond girls" com pêlo na venta. Ninguém vai ao ponto de mimetizar de maneira tão completa um caleidoscópio de espionagem dos anos 60 se não tivesse um grande amor por eles, e "Agente 117" é obra de quem conhece e ama o género e lhe quis prestar uma homenagem esquinada.

Claro que quem quiser pode também vê-lo como uma rebuscada metáfora dos colonialismos serôdios que ainda hoje pululam por aí, mas, aqui para nós, é muito mais divertido e recompensador vê-lo como uma excelente comédia que nada tem de burro. É, por onde se quiser ver, uma grandíssima surpresa.

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