É um trabalho sujo mas alguém tem de o fazer

Coloquemos a coisa neste pé: depois de "Borat...", que se estreia na próxima semana, dificilmente se encontrará este ano filme mais ultrajantemente corrosivo do que "Obrigado por Fumar". Ainda por cima vindo de quem vem: é a primeira longa de Jason Reitman, filho de Ivan Reitman, realizador de sucesso no registo "Os Caça-Fantasmas" e afins, com um elenco de luxo que chama um figo à sátira desavergonhada e violenta.

O seu herói (se é que se lhe pode chamar isso...) é Nick Naylor, "lobbyista" das tabaqueiras americanas, um homem cuja profissão é, nas suas próprias palavras, "ser odiado" - e dar a volta por cima. Um mestre da manipulação mediática que sabe que os cigarros são perigosos mas não tem o menor problema em defendê-los para pagar a renda ao fim do mês - mas também um pai divorciado que procura educar o filho o melhor que sabe, e um homem inteligente que sabe que há sempre duas maneiras de olhar para qualquer questão.

Um vendido, em suma? Não é assim tão fácil - como é que se equilibra a integridade com a necessidade de ganhar dinheiro? "Obrigado por Fumar" quer funcionar em três registos distintos. Dos três, funciona melhor no de sátira - aos políticos venais, aos comportamentos hipócritas, à ambição do sucesso, a uma sociedade onde o dinheiro paga tudo. Fá-lo com inteligência, ritmo diabólico e um prazer quase juvenil em carregar em todos os botões destinados a ofender uma vaca sagrada, mas não se pode acusá-lo de ingenuidade ou de gratuitismo - e nem sequer nos está a dizer nada que já não tivéssemos percebido, que isto dos "lobbies" não é segredo para ninguém. Só que o diz com agradável desfaçatez, com uma atitude de não-me-ralo-nada marota e garota que o torna irresistivelmente simpático. E funciona surpreendentemente bem no segundo registo - o de comédia familiar, com a relação entre Nick e o filho Joey construída sobre uma abordagem inesperadamente adulta e muito lúcida aos problemas da maturidade e da maioridade.

Já no terceiro registo, o de fábula social à Frank Capra, Reitman júnior tem mais problemas para se impôr, pois a irrisão deste humor ácido vai-a-todas inibe as pretensões de falsa superioridade moral com que o filme encerra - depois de tamanha subversão afixada ao longo da história, talvez fosse esperar demais que "Obrigado por Fumar" levasse a coisa ao limite, e o final aceitavelmente feliz reinstala uma certa segurança confortável (mesmo que não resista à piscadela de olho subversiva) e abre o flanco a infundadas acusações de demagogia. Enquanto Capra se levava demasiado a sério, Reitman não se leva o suficiente - é isso que faz, ironicamente, as fraquezas e as forças do seu filme.

No entanto, é importante não deixar esses pormenores estragar esta hora e meia de divertimento politicamente incorrecto, ainda por cima quando Aaron Eckhart confirma todo o bem que pensávamos dele com uma inspiradíssima "performance" cómica. Com mais um bocadinho de esforço, seria uma sátira de estadão; assim, é uma provocação inteligente que desiste antes do fim.

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