A vitória dos vencidos

Saiu a sorte grande a Jonathan Dayton e Valerie Faris. Como realizadores de videoclips - REM, Janet Jackson, Red Hot Chili Peppers - nada na sua carreira os fazia indicados para serem realizadores de um filme como "Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos"/"Little Miss Sunshine". Esta primeira longa é, por estes dias, um daqueles casos que, periodicamente, surgem na indústria americana: depois de uma recepção entusiástica no Festival de Sundance, onde se tornou favorito dos espectadores, um pequeno filme vem construindo uma fama de "outsider" que chegou para, suposta e finalmente, satisfazer desejos até aqui frustrados de fatias de públicos - o de encontrar no grande ecrã personagens e não só efeitos especiais.

Este "outsider" está na origem de uma bola de neve mediática: o facto de permitir um efeito de reencontro leva a que se grite - a propósito e a despropósito - pela sua "novidade". Ainda nos recentes MTV Video Awards, Fergie, dos Black Eyed Peas, permitia-se exagerar, dizendo que via aqui "o futuro". Os rituais do espectáculo já começaram, portanto. E sonham-se altos voos para "Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos", Óscares e outros prémios.

"Gostamos de fazer filmes muito marcados do ponto de vista visual, é verdade, mas isso são os nossos videoclips. Desta vez queríamos fazer uma coisa diferente", começa por dizer Valerie ao Y, ao telefone desde Los Angeles. "1h30 de filme em vez de três minutos é algo completamente diferente para nós. Foi o encontro com o argumento [de Michael Arndt], que se abre à viagem com uma série de personagens, que nos fez aceitar o desafio. As personagens interessavam-nos. Tivemos que gostar de um argumento como antes, nos videoclips, tínhamos que gostar de uma canção. Mas não podíamos pensar só nos efeitos, no estilo, ou então estaríamos com problemas".

"Sim", continua Jonathan, "decidimos logo que não queríamos artifício, antes abrir um caminho qualquer entre personagens e espectadores". E o filme abre-se à viagem: os Hoovers partem de Albuquerque, Novo México, em direcção a Redondo Beach, Califórnia, para levar o benjamin da família, Olive (Abigail Breslin), sete anos, a participar num concurso de beleza infantil - o tal "Little Miss Sunshine". Os Hoovers são uma família disfuncional, como se diz. Dentro de uma carrinha em desagregação vão o pai Hoover, Richard (Greg Kinnear), um pregador da filosofia do triunfo, alguém para quem o mundo se divide entre "vencedores" e "vencidos" e que tem um programa de etapas para quem pretender ascender aos "winners" (mas então: porque é que a vida de Richard é como é?); a mulher, Sheryl (Toni Collete), sem braços suficientes para acudir ao caos; o filho Dwayne (Paul Dano), leitor compulsivo de Nietzsche, compulsivo e silencioso, porque fez voto de silêncio até conseguir entrar na Força Aérea; o avô (Alan Arkin), heroinómano e um espírito rebelde que sobrevive - é ele que treina os passos de Olive para o concurso.

O tio Frank (Steve Carrell) é a mais recente entrada no colectivo turbulento, mas é uma entrada à altura: especialista em Proust, homossexual, acabou de tentar o suicídio porque perdeu o objecto da sua afeição (e porque é "apenas" o segundo melhor especialista em Proust do país, não o primeiro...). É dos Hoovers que Jonathan e Valerie tratam, encaminhando a família para uma apoteose - a vida como um concurso de talentos, a vida como uma dança... -, onde, ao som de "Superfreak" de Rick James, eles parecem querer dizer: somos como somos. E mandar para trás a obsessão pela vitória (superfreaks é o que são; como se cantassem a sua versão do muito "beckiano" "I"m a loser, baby!"). Que eles, Jonathan e Valerie, são realizadores de videoclips isso não se nota, deve dizer-se. (Como não se nota essa marca artificiosa no trabalho, rugoso, sujo, de outros "videoclip directors" como Spike Jonze, Michel Gondry...) "É verdade", reconhecem Jonathan e Valerie. "Penso que tem a ver com o facto de na experiência de realização de longas-metragens ter havido um trabalho de cooperação com um argumentista", explicita Jonathan. "No caso de Spike, por exemplo, ele trabalhou anos com Charlie Kaufman [argumentista de "Queres ser John Malkovich?" ou de "Inadaptado"]. No nosso caso, trabalhámos cinco anos no argumento e com a colaboração de Michael Arndt".

ensemble piece.

Cinco anos, muito tempo. Por várias razões: em primeiro lugar, a carreira de Dayton/Faris não garantia uma aposta dos estúdios (se, como os realizadores contam, até um dos actores do filme, Alan Arkin, estava com dúvidas por se tratar de uma dupla, porque era uma estreia, por causa dos videoclips, imaginem-se os executivos...). Depois, "o filme tinha certas características que põem os estúdios em dificuldades: é uma "ensemble piece", um filme de grupo, enquanto os estúdios querem filmes com uma ou duas estrelas que sirvam de chamariz. É o "casting" que faz vender o filme, aqui isso não era apropriado".

Ainda, o facto de Jonathan e Valerie terem encaminhado o argumento para algo de ligeiramente diferente da versão original. O tom inicial, dizem, era "de comédia pura" - e exemplificam com a sequência em que a família atira pela janela do hospital o cadáver do avô ou, mais à frente, a sequência em que o polícia abre o porta-bagagens da carrinha onde... está o cadáver do avô: havia mais sangue, burlesco.

Ou a sequência final ("a mais difícil do filme"), a dança ao som de "Superfreak": segundo os realizadores, o argumento não articulava nem explicitava a verdade dessa cena: a redenção dos "losers". Jonathan e Valerie reforçaram o "statement". "Trabalhámos no sentido de evitar que essa sequência tornasse o filme um "filme-Disney"". Já que se fala da cena final, deve-se ainda mencionar a cena inicial, aquele jantar em que as personagens nos aparecem empenhadas num decisivo frente-a-frente, entre elas e consigo próprias - verdade seja dita: é um contrato com a frontalidade e a crueldade que o filme não consegue depois cumprir, porque vai tratando de acolchoar para que ninguém se magoe decisivamente. É a melhor sequência de "Uma Família...", e como Valerie e Jonathan contam, muitos apareceram pelo caminho a dizer que era demasiado longa, que não se fazia assim nas comédias ou na TV, que...

"É interessante ver", retoma Valerie, "como é que as pessoas, num mundo cada vez mais competitivo - é o que se passa na América -, estão a reagir ao filme. Os americanos sentem uma grande tensão e verem um filme que articula essas questões é para eles importante. Porque ninguém lhes tinha dito, antes pelo contrário, que há a opção de não serem obcecados por dividirem a vida entre "vencedores" e "vencidos". E que se pode brincar com essa obsessão americana pela vitória".

"À medida que a tecnologia avança e se pode fazer tudo em cinema, há uma tendência contrária que começa a aparecer, virada para histórias em que o elemento humano é mais importante". Assim Valerie e Jonathan, fãs do cinema de Hal Ashby, Mike Nichols, Bob Fosse (os incontornáveis 70s...) explicam o fascínio do cinema americano de hoje pelo cinema americano de há três décadas. "Talvez não seja consciente, mas é um facto. Diríamos que, neste filme, isso se concretiza desta forma: que as pessoas se riam com as personagens e não das personagens; trabalhar o que nos liga às personagens em vez de tentar antecipar o que as pessoas esperam do filme". Não é forçado ver na presença de Alan Arkin, actor que construiu a parte mais significativa da sua carreira nos anos 60/70, a sobrevivência de um individualismo e rebeldia de outros tempos, pois não? "Não, o Alan é alguém de que gostávamos no cinema daquela era, e traz ao filme uma rebeldia incrível. Que é tudo o que nos faz gostar dele, como actor e ser humano...".

Chegados aqui, tem que se perguntar como é que a equipa conjugou a necessidade de perspectivar de forma crítica a obsessão pelo sucesso com o material humano que tinha pela frente. A saber: as mães e filhas que surgem nas sequências finais do concurso, naquele hotel californiano, são verdadeiros corredores de fundo do espectáculo americano da vitória. O que é que as fez aceitar serem filmadas? "As mães, sobretudo, estavam nervosas [com a presença da equipa de rodagem] porque tem havido uma série de documentários críticos em relação a este tipo de concursos. Mas queríamos mostrar apenas as coisas como elas são, sem fazermos editorial, sem exagerar a sátira. As pessoas que tirem depois as suas conclusões", conta Valerie. "Por outro lado, aquelas famílias estavam também excitadas por estarem numa produção de Hollywood. Sabiam qual era o contexto do filme, que havia uma família mais ou menos alienígena que aterrava naquele ambiente...".

Jonathan e Valerie também são, a seu modo, alienígenas. Esperaram muito tempo para realizar este filme. Mas nem por isso se consideram cineastas a tempo inteiro (no sentido de realizadores de longas-metragens). "Gostámos da experiências, vamos estar atentos e tentar prosseguir o caminho das longas. Mas vamos continuar a fazer os nossos videoclips".

Por isso... "Óscares? É um jogo político que não estamos preparados para jogar", conclui Valerie. "Prémios? Há prémios de interpretação para o conjunto de actores e há muito poucos filmes com um "ensemble" como o de "Uma Família...". Nem "Crash" [de Paul Haggis, Óscar do melhor filme] tinha um conjunto assim. Um prémio desses, sim, seria justo".

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