Cavaco "não vai pôr os pés na realidade da Serafina"

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Muitas das habitações da zona da Serafina são ainda abarracadas ou, entretanto, desfizeram-se em escombros Enric Vives-Rubio/PÚBLICO

A informação correu de tasca em tasca, durante a semana passada, seguindo encosta acima, pelo casario precário da Serafina. A visita do Presidente da República a um dos mais antigos guetos de Lisboa, agendada para hoje, limitar-se-ia, afinal, ao Centro Social de São Vicente de Paulo, instituição exemplar, única edificação sólida e pintada do bairro degradado.

No domingo, Francisco Rebelo Crespo, padre aguerrido e controverso, um homem que fala directamente com Belém, confirmava ao PÚBLICO o "lamentável" desenrolar das conversações com o "staff" presidencial. "À última hora disseram-me, da Presidência, que a Câmara de Lisboa havia aconselhado Cavaco Silva a não visitar o bairro", conta. O director do centro, responsável, há mais de 30 anos, pelo apoio social nos bairros da Serafina e da Liberdade, indigna-se: "Queria que ele pusesse os pés na realidade: olhasse os escombros mesmo aqui em frente ao portão, visse a exclusão que existe lá fora."

A razão da inversão dos planos da visita oficial, integrada no Roteiro para a Inclusão, permanece nebulosa. Em todo o caso, para os locais, a explicação é clara. O Presidente teve medo: receou apupos sobre o processo de realojamento, não quis ver a degradação da construção e acreditou nos mitos que se foram construindo sobre a insegurança na comunidade.

Os engravatados e a canalha

O problema não é o Bairro da Serafina, no cimo da encosta, onde mora "gente supostamente séria e engravatada". Aquilo que Cavaco Silva terá temido, aquilo que todos temem, é o Bairro da Liberdade, meio demolido, meio escombros, meio sério e trabalhador (empregadas domésticas e pedreiros e serviços), meio malandragem, antigo ninho de alguns dos bandidos mais célebres de Lisboa.

Apesar da proximidade física, as diferenças entre as duas comunidades são óbvias. Na zona da Serafina, as residências térreas, em banda, cumprem a traça de bairro económico da década de 50, construído de raiz. Mas mais em baixo, onde a encosta se precipita, as habitações são caóticas e instáveis, reconversão tosca das centenas de barracas ali erguidas desde o início do século XIX.

Por outro lado, na zona norte, não se vê praticamente ninguém nas ruas e há carros de gama alta estacionados. Na parte sul, é um frenesim de crianças jogando à bola, mulheres de saco de supermercado na mão, homens espreguiçados em frente às casas, bebericando cerveja.

A distinção não tem, contudo, menção topográfica (aliás, o Bairro da Liberdade, apesar de ser bem mais antigo, não vem em placas ou roteiros). E só os mais antigos, como o senhor Joaquim, merceeiro, venerável ancião da comunidade, fazem ainda questão de marcar essas fronteira, uma fronteira histórica e política.

"Desta rua para cima é a Serafina, gente importante. Daqui para baixo é a Liberdade, é a canalha", assinala o homem, ali instalado desde 1 de Janeiro de 1932. Ana Maria Sousa, 45 anos, empregada doméstica e cliente habitual, corrobora a sociologia do merceeiro. Mas acrescenta que "muitos dos que vivem na Serafina são gente simples, armada ao importante, que se transferiu da Liberdade".

A afirmação é, em parte, verdadeira. O Bairro da Serafina foi erguido pelo Estado Novo, há cerca de 60 anos, para alojar elementos das corporações da polícia, dos CTT, da CP, de instituições bancárias, entre outras - condição que fez com que alguns dos subversivos da Liberdade se referissem aos seus vizinhos como a "bufaria". Mas à medida que os funcionários públicos foram morrendo, boa parte do povo que ocupava as barracas da zona sul acabou por mudar-se para os tectos de tijolo da Serafina.

Actualmente, restam alguns herdeiros dos primeiros moradores, atraídos pelo recanto florestal, com vista privilegiada sobre o Tejo e a zona poente da cidade.

Miguel Pardelhas Sanchez, médico respeitado, é um deles. A família tem uma longa tradição no bairro. O avô, ferroviário, foi um dos primeiros a habitar a encosta de Monsanto. O pai, também médico, socorreu todas as maleitas da população, durante várias décadas, sendo lembrado para a posteridade com a inscrição do seu nome na rua principal do Bairro da Liberdade.

O filho ainda hoje mantém esse estatuto. Quase toda a gente sabe o seu número de telefone, muito útil em situações de emergência. "Isto é uma espécie de aldeia, onde toda a gente se conhece", explica o clínico. "Há muita vida social nos cafés." O bairro tem cerca de duas dezenas.

A sua casa é uma pequena vivenda. Na sala tem vários quadros de paisagens do aqueduto, que termina a poucos metros dali. E nota-se um ambiente confortável e sofisticado, computador portátil numa das mesas, um piano junto à parede.

Empregado actualmente numa farmacêutica, o médico admite, no entanto, que a serra já não exerce sobre os seus filhos o encanto que tinha há 40 anos. E que, quando quer ir almoçar fora, prefere os restaurantes das Twin Towers, em Sete Rios, à oferta local.

A razão por que permanece ali resulta, por isso, evidente: tem uma boa casa, a custo zero, "com acessos óptimos para Lisboa", num sítio que, "apesar de tudo, tem evoluído de forma positiva" e já não é o faroeste dos anos 70.

Da lei de Gordeon à lei de Deus

O tempo em que o "temível" Gordeon dominava o bairro acabou na década de 80, 90. O ex-presidente do Lusitano, clube local, era um dos mais conhecidos delinquentes do seu tempo e fazia o que queria da gente do bairro. Assaltante de bancos e de ourivesarias, mestre de todo o tipo de negócios obscuros, acabou por ficar paraplégico depois de um tiroteio com o igualmente perigoso Dillinger, seu rival na zona de Campolide.

Mesmo sentado numa cadeira de rodas, no entanto, Gordeon continuou a controlar o bairro. O respeito popular misturava-se com medo. Justificadamente. Não há quem não se recorde da vez em que matou um homem, numa festa no clube de futebol, alegadamente por este se ter metido numa discussão com o filho.

Mesmo os padres, que se instalaram na Serafina desde a década de 50, acabaram por se submeter à sua vontade, permitindo que o seu gang participasse nos lucros da paróquia.

O único homem que o afrontou foi precisamente o padre Crespo, que hoje fará de anfitrião a Cavaco Silva. "Negociei com ele. Mostrei que me preocupava em ajudar as pessoas, fiz-lhe ver que tinha garra", recorda Francisco Crespo, que acabou por se tornar na pessoa mais influente da comunidade, "evangelizando pela caridade". Felizmente para Cavaco Silva, o padre não usa armas. De fogo.

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