A porra das cobras

Portanto, umas largas dezenas de cobras venenosas são deixadas à solta num avião de passageiros que viaja do Havai para Los Angeles. Foram ali largadas pelos capangas de um "gangster" mau e cruel que quer eliminar uma testemunha incómoda, um pacato surfista que o viu com os dois que a terra há-de comer matar o promotor público que o persegue.

A ideia é não correr riscos: se as cobras não matarem a testemunha, dão com certeza cabo do avião a rastejar por entre os cabos eléctricos e a morder passageiros e tripulação avulsos, numa espécie de "self-service" para cobras, e ainda por cima um vilão teve a feliz ideia de espalhar feromonas pelo avião para inflamar o pipi dos répteis. No entanto, é não contar com o "cool" inquebrantável do actor com maior estilo do planeta, Samuel L. Jackson, que é o agente do FBI encarregado de proteger o pacato surfista-testemunha e que, não tarda nada uma loja de barbeiro, vai lançar a frase que já toda a gente tem na boca: "I'VE HAD IT WITH THESE MOTHERFUCKING SNAKES ON THIS MOTHERFUCKING PLANE!" (em tradução livre, "já estou farto desta porra destas cobras nesta porra deste avião", significando que a mostarda já lhe chegou ao nariz e não há de faltar muito para as cobras começarem a levar porrada).

É isto que "Serpentes a Bordo" é - só que não é bem, porque tinha obrigação de o ser mais; é isto que "Serpentes a Bordo" devia ser - só que não o é bem, porque é menos do que devia; e "Serpentes a Bordo" deve ser o primeiro filme da história que se tornou num fenómeno de popularidade antes sequer de estar concluído. Tudo por causa do título - "Snakes on a Plane", um dos mais magníficos exemplos de genialidade bronca jamais inventados por Hollywood (reza a lenda que foi inventado em roda de colegas ao fim da tarde, e era tão idioticamente evidente que ficou mesmo assim). De tal modo bronca que os próprios produtores, receosos do mau aspecto que um título tão aparentemente idiota pudesse dar à sua honestinha série B, ainda brincaram com a ideia de o mudar para "Pacific Air 121". Não contaram com o motim de Jackson, que admitiu publicamente ter aceite fazer o filme só por causa do título - nem com o bruáa que se gerou na Net à conta do tal título tão palerma que chega a ser genial. Ficou mesmo "Snakes on a Plane" e faltava apenas fazer o filme que o título exigia: cobras à solta num avião de passageiros.

Ele aí está, então. E dificilmente David R. Ellis conseguiria fazer melhor justiça ao seu título do que com visões de pesadelo de cobras esfomeadas a atirarem-se ao almoço ainda vivinho da costa e sem ter para onde fugir, contra-ataques do povo vingativo (cobra no micro-ondas? cobra assada? cobra electrificada? É à escolha do freguês) e, sobretudo, Jackson a querer "get medieval" pelas cobras acima. Porque é que, então, "Serpentes a Bordo" não é o delírio "trash" que tudo faria prever? Bom, pelo simples facto de que... não é um filme "trash" (embora lhe escorregue o pé para a chinela aqui e ali). "Serpentes a Bordo" é uma fita de segunda linha, um "programmer" de série B que nos velhos tempos funcionaria como "filme de porrada" numa das sessões duplas dos cinemas de reprise, "drive-ins" ou cinemas de bairro, cuja filiação está mais do lado do filme-catástrofe dos anos 1970 ("Aeroporto", 1969, de George Seaton à cabeça) e das fitas de acção industriais dos anos 1990 ("Passageiro 57", 1992, de Kevin Hooks, com Wesley Snipes, ou "Decisão Crítica", 1996, de Stuart Baird, com Kurt Russell e Halle Berry - até mesmo o segundo "Die Hard", "Assalto ao Aeroporto", 1990, de Renny Harlin). Ou seja, para pôr a coisa mais compreensível: é uma série B sem pretensões de ser outra coisa que não um delírio pipoqueiro assumido, que é para isso que estas coisas servem.

série b, onde estás?

Claro que hoje já não se consegue fazer uma série B como antigamente. Primeiro, porque a série B vivia em grande parte da estética da pobreza a que o seu orçamento de "filho enjeitado" na produção dos grandes estúdios que não permitia contratar um elenco de estrelas ou ter efeitos especiais de primeira água, obrigava, forçando os seus autores a fazerem milagres com quase nada. É verdade que, nesse aspecto, "Serpentes a Bordo" resume tudo a um cenário (o avião) e a meia-dúzia de actores (menos do que as cobras), mas o filme está muito longe de parecer uma produção pobrezinha. Falta-lhe é a economia criativa que a necessidade de ter umas quantas centenas de cobras a passear por um cenário sem que ninguém se magoe (nem mesmo as próprias) automaticamente exclui - hoje em dia a tecnologia é tão acessível que arranjar umas centenas de cobras digitais realistas para uma fita barata não é nada demais.

Depois, tudo no cinema de acção e suspense contemporâneo é uma referência maior ou menor de filmes anteriores (e em muitos casos melhores), nada de surpreender numa indústria que se especializou numa linha de montagem de produção - de tal modo que há apenas duas opções para a coisa resultar: ou procurar ser original dentro dos parâmetros pré-estabelecidos (exemplo feliz: o recente "Infiltrado" de Spike Lee), ou então jogar a fundo a carta da referencialidade e assumir-se como um derivado ou como um pastiche. Ora, entre uma e outra "Serpentes a Bordo" nunca escolhe - há momentos em que assume abertamente o lado de "mise-en-abîme" auto-referencial (Samuel L. Jackson a reciclar os seus "motherfuckers" icónicos é o mais evidente), outros em que David R. Ellis e os argumentistas John Heffernan e Sebastian Gutierrez parecem genuinamente acreditar que estão a fazer algo de novo e de sério que mantém viva a linhagem da série B.

A verdade é que é esse constante vai-vem entre a seriedade e o segundo grau que dá toda a graça a "Serpentes a Bordo", mas é também isso que o impede de ir mais longe, retendo-o num limbo desconfortável que contamina a sua energia. Se calhar, não é surpreendente que assim seja: estamos a falar de um objecto que, ao longo de uma boa década de alucinante montanha-russa pelos bastidores de Hollywood, sofreu mais viragens e reviravoltas do que um projecto "normal" (quase entrou em produção na Paramount antes do 11 de Setembro o pôr no mercado, à espera de um momento mais propício para a sua montagem). Talvez por isso, o resultado final acaba por ser uma espécie de "monstro de Frankenstein" que quer agradar a todos (o que costuma ser a melhor maneira de não agradar a ninguém) e perdeu pelo meio alguma da personalidade que se desejava.

Mas uma coisa é certa: desde que não se peça a "Serpentes a Bordo" mais do que uma fita de sustos descartável e pipoqueira - e, no fundo, é só isso que o filme de David R. Ellis é - não se corre o risco de sair grandemente decepcionado. Afinal, Samuel L. Jackson está mesmo farto da porra das cobras.

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