A piranha

Ainda há surpresas a esperar de Claude Chabrol? O veterano/venerando cineasta francês acomodou-se há largos anos na sua vocação de cronista clínico e impiedoso dos esqueletos no armário da pequena burguesia provincial. E a verdade é que desde que Chabrol encontrou esse seu nichozinho que cada novo filme se constrói como uma variação sobre o tema-base, aqui mais inspirada ("A Cerimónia"), ali mais chapa-quatro ("A Dama de Honor"), mas sempre numa impecável velocidade de cruzeiro, com um assinalável nível de conforto, dentro de um território perfeitamente delineado. Como se o rebelde cáustico da "Nouvelle Vague" tivesse "virado a casaca" e fosse agora o primeiro defensor do "cinéma à papa" de factura clássica contra o qual a sua geração se insurgiu publicamente.

Talvez por isso a primeira das duas surpresas de "A Comédia do Poder" esteja desde logo no seu título português (tradução literal do título inglês com que foi mostrado em competição em Berlim, "A Comedy of Power"): esta viagem aos segredos dos corredores do poder político e judicial é, de facto, uma comédia. A um tempo clássica, mesmo que cheia daquela ironia afiada que é tão típica de Chabrol, e metafórica, no sentido francês, teatral, da palavra "comédie" enquanto sinónimo para "representação". Porque a este nível rarefeito de poder, tudo se parece jogar ao nível de uma peça teatral que se mantém imutável através dos tempos e onde todos nunca podem fazer mais do que representar um papel previamente definido no guião.

Chabrol segue, então, o percurso que leva a ambiciosa e implacável juíza de instrução Jeanne Charmant-Killman (o nome não é inocente...), simpaticamente conhecida pela "Piranha", a compreender como o poder que ela julga deter e com o qual quer idealisticamente "limpar" a corrupção impune do Estado, não passa de um abstracto e uma ilusão. Jeanne sabe que as ramificações do desvio de dinheiros públicos por um poderoso grupo empresarial que investiga a levarão a interesses políticos estabelecidos e que esses, nada interessados em que as coisas mudem, farão tudo para paralisar a investigação. Mas isso parece apenas dar-lhe a determinação necessária para insistir na sua necessária tarefa de "limpeza".

Claro que esta mulher que se atravessa no caminho dos poderosos não está isenta de "hubris" - a sua obsessão profissional quase dita a sua inexistente vida pessoal - mas a verdade é que para Chabrol ninguém é inocente. E não é certamente por acaso que a juíza é interpretada pela sua cúmplice habitual Isabelle Huppert, que empresta toda a ambiguidade que lhe reconhecemos a uma "heroína" que tem muito de determinado e muito pouco de simpático. Espécie de "Robespierre de saias", como apontava Jean-Luc Douin no "Le Monde", Jeanne deixa-se levar pela mesma sensação de intocabilidade daqueles que persegue - e nem Chabrol nem Huppert deixam o espectador esquecer-se disso, mesmo que esta comédia do poder seja significativamente mais ligeira do que é habitual no realizador.

É precisamente essa ligeireza cómica que leva à segunda surpresa de "A Comédia do Poder" - o facto de este ser um "roman à clef" que ficciona livremente sobre o escândalo Elf Aquitaine dos anos 1990, durante o qual executivos daquela companhia petrolífera francesa a usaram como um autêntico banco que financiava os seus prazeres pessoais. Não é muito habitual ver uma ficção assumidamente inspirada num caso verdadeiro assumir o displicente sentido de humor cáustico com que Chabrol, Huppert e um magnífico elenco de secundários (especial destaque para François Berléand e Thomas Chabrol, filho do realizador) se deleitam a atirar farpas à classe empresarial e política. Mas acaba por ser esse humor o traço que explica porque é que, mesmo que "A Comédia do Poder" nada traga de novo ao seu cinema, Claude Chabrol continua a ser um filho da "Nouvelle Vague" que não cedeu totalmente ao conforto burguês. Face à recente onda de convulsões sociais em França, este é um filme perfeitamente síncrono com o seu tempo.

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