O colégio das 4 torres não era assim

"Se chegar ao fim do filme e ainda estiver à espera de uma resposta, então vai com certeza sentir-se frustrado e aborrecido." Ao dizer isto sobre o seu próprio filme (numa entrevista à revista inglesa "Sight & Sound", aquando da estreia de "Inocência" em Inglaterra em Setembro), a realizadora Lucile Hadzihalilovic está já a convidar ao debate sobre um objecto esfíngico que resiste sistematicamente a qualquer tentativa de definição.

À saída da projecção de imprensa portuguesa, havia quem dissesse "como é possível comprar-se porcarias destas... depois queixem-se que não têm espectadores". E, sabendo que a realizadora e argumentista deste filme ambientado num peculiar internato de raparigas é nem mais nem menos que a companheira do muito controverso Gaspar Noé (ele de "Irreversível"), é inevitável sentir um perfume de escândalo a rodear "Inocência". Michael Atkinson, da "Village Voice", considerou-o o melhor filme que viu em 2005 e comparou-o a "Zero em Comportamento", de Jean Vigo; Philip French, no britânico "Observer", define-o como "sinistro" e perguntou-se que raio de público estará interessado nele (ao que parece, há até quem tenha acusado o filme de "incitamento à pedofilia").

Atiremos mais água para a fervura: "Inocência" inspira-se numa novela do dramaturgo alemão Frank Wedekind, o autor de "Lulu", intitulada "Mine-Haha ou a Educação Corporal das Meninas", e Hadzihalilovic invocou publicamente os espíritos de clássicos de culto como "Piquenique em Hanging Rock" de Peter Weir, "Suspiria" de Dario Argento ou "O Espírito da Colmeia" de Victor Erice. São pistas que podem ajudar a compreender o universo onírico (e, ao mesmo tempo, muito concreto) em que "Inocência" se desenrola: um internato à la "Colégio das 4 Torres" (ou, se quisermos, "Harry Potter"...) sediado num bosque sumptuoso, isolado do mundo por um intransponível muro alto, onde duas dúzias de meninas vivem em clausura estudando a natureza e o ballet. Todos os anos, as mais velhas saem à noite com um destino desconhecido das outras, e no final do seu último ano abandonam este universo simultaneamente acolhedor e concentracionário, ao qual chegam dentro de caixões, do qual saem de comboio, de onde a fuga é interdita e onde as únicas presenças adultas são duas professoras e as governantas das cinco casas.

A verdade é que "Inocência" é aquilo que o título indica: uma meditação opaca e oblíqua sobre a inocência, que enceta um jogo de escondidas com o espectador e deixa o filme em aberto. Hadzihalilovic outra vez à "Sight & Sound": "O filme é simbolista mais do que simbólico, na medida em que trabalha através das imagens e as imagens podem ter múltiplos significados". O extraordinário controle atmosférico da realizadora, e do seu director de fotografia Benoît Debie, enquadra a história num ambiente a um tempo irreal e hiper-real de conto de fadas estilizado numa terra de ninguém entre o ontem e o hoje, mas essa estilização contribui também para construir um subtexto sinistro, como se houvesse algo de errado neste parque aparentemente perfeito que é o novo lar das suas habitantes, completamente isoladas da sua vida anterior (e que, chegadas ao fim da sua estadia, se perguntam porque não podem ficar). Hadzihalilovic não hesita sequer em antecipar eventuais acusações de voyeurismo ou de perversão, integrando-as na arquitectura narrativa do filme, através de um teatro onde as estudantes apresentam as amadoras coreografias que ensaiam para uma audiência que nunca é vista, ao mesmo tempo que o isolamento do mundo real reenvia para utopias educacionais do passado - mas, ao contrário de todos os filmes em que tudo pode ser mais do que parece, tudo em "Inocência" está tão carregado de subtextos que pode ser menos significativo do que parece, numa deliberada "manobra de diversão" (ou de desarmamento).

É verdade que se sai de "Inocência" com as mesmas perguntas com que se entrou - Lucile Hadzihalilovic faz questão de não dar respostas, limita-se a levantar perguntas às quais cada um responderá como bem entender. É também verdade que, enquanto o filme dura, viajamos, intrigados, como que em hipnose, por um universo estritamente regulamentado e extremamente coerente que se parece desintegrar ao contacto com o mundo real (como o próprio filme parece sugerir no final, tão oblíquo e elíptico como tudo o que ficou para trás). É ainda mais verdade que "Inocência" é o filme de uma cineasta seguríssima e inventiva, meticulosamente pensado para ser um livro em aberto onde cada um lerá aquilo que bem entender. Ame-se ou odeie-se - ou, mais ainda, ame-se e odeie-se - "Inocência", mas retenha-se o nome: Lucile Hadzihalilovic sabe filmar. E sabe muitíssimo bem o que está a fazer - mesmo que nós não saibamos.

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