Família nuclear

Não é segredo para ninguém que os melhores filmes fantásticos reflectem as tensões e preocupações sociais subterrâneas dos momentos em que são construídos. Nem que essa reflexão escondida por trás de uma fachada descartável de cinema de género, muitas vezes, lhes possibilita um "prazo de validade" muitas vezes superior ao de filmes seus contemporâneos. Pense-se, por exemplo, na história de Jack Finney sobre uma invasão da Terra por extra-terrestres que se apoderam dos corpos e criam duplicados robóticos: as três versões realizadas ("A Terra em Perigo!" por Don Siegel em 1956, "A Invasão dos Violadores" por Philip Kaufman em 1978, "Violadores - a Invasão Continua" por Abel Ferrara em 1993) mantêm intacta a trama central, mas da metáfora da Guerra Fria de Siegel passamos à corporativização da América em Kaufman e ao alheamento da comunidade em Ferrara.

Era essa aparente intemporalidade que ganhava a arrepiante actualização de "Zombie" de George A. Romero por Zack Snyder em "O Renascer dos Mortos", e que ganha agora esta "remake" do filme que, em 1977, lançou Wes Craven, "The Hills Have Eyes" (que nunca chegou a estrear oficialmente em sala em Portugal). "Terror nas Montanhas" (produção da 20th Century-Fox, estúdio habitualmente alheio ao género) confirma também, depois do êxito inesperado de "Hostel", de Eli Roth, ou dos dois filmes "Saw", a definitiva aceitação pelo "mainstream" americano do terror "gore" mais sanguinolento até aqui considerado como "nicho" independente de conhecedores ou entusiastas. Para esses, "Terror nas Montanhas" terá uma bênção adicional: Craven produziu a "remake" com Peter Locke, produtor do filme original, e escolheu o francês Alexandre Aja para a dirigir. Ao nível da brutalidade e do derramamento de sangue, dificilmente os apreciadores sairão desiludidos desta "remake" que quase nada altera na trama original de Craven, mas actualiza a perturbante metáfora política que já lhe estava subjacente: uma família de turistas à mercê de uma tribo de canibais. Uma América autofágica que se come a si mesma.

De facto, a "família nuclear" que atravessa os EUA em direcção à Califórnia de caravana para celebrar o aniversário de casamento é um micro-cosmos da América contemporânea - um patriarca conservador, polícia reformado e amador de armas, uma mãe que foi hippie e se converteu ao catolicismo, um genro liberal pacifista, uma filha mais nova cabeça no ar, o todo coabitando assaz dificilmente entre si no exíguo espaço da luxuosa caravana "fifties" em que viajam. E esta "família nuclear" vai chocar com uma família verdadeiramente nuclear, porque a tribo de canibais que os atrai a uma armadilha sem saída no deserto do Novo México é também ela uma família - os descendentes dos mineiros da zona que se recusaram a abandonar a área quando esta foi usada para testes nucleares na década de 1950, mutantes afectados pela radiação, exercendo a sua vingança sobre a sociedade que os condenou. Metáfora de uma América confrontada com as consequências a médio e longo prazo das acções que empreende em nome de um "futuro radioso", de um país que se desenha como o seu próprio pior inimigo ao retardador, que hipoteca o seu futuro sem pensar duas vezes em nome da recompensa imediata.

Metáfora evidente, é certo, mas nem por isso menos eficaz, sobretudo quando encenada com requintes de malvadez por Alexandre Aja num alucinante terceiro acto situado numa falsa "smalltown" meio incinerada construída para os testes atómicos, onde cabe ao liberal pacifista libertar o selvagem dentro de si para assegurar a sobrevivência de uma nova família nuclear.

De Aja, filho do realizador francês Alexandre Arcady, conhecia-se um pretensioso "Furia", baseado em Julio Cortazár e apresentado no Fantasporto de 2002, e o sanguinolento "slasher" "Haute Tension" - nada que fizesse prever a inteligência e a eficácia deste "Terror nas Montanhas" que, como poucos outros filmes recentes, consegue articular um perturbante subtexto caucionário com uma ficção "gore" genuinamente aterrorizante perfeitamente balizada pelos cânones do género, e filmada com uma energia e um entusiasmo quase doentios (tendo em vista as imagens boschianas que vão pontuando o filme). Nada faria prever a surpresa: aí está ela, ainda por cima nada recomendável a cardíacos ou almas sensíveis - é dos melhores filmes de terror dos últimos meses.

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