A câmara dos segredos

O cinema obsessivo de Edgar Pêra tem o condão de afastar os espectadores que não estejam predispostos a penetrar na sua gramática visual excessiva, barroca, assumidamente experimental e não-linear, fortemente baseada na manipulação e fragmentação da imagem até limites de quase incompreensibilidade.

Mas reside nessa obsessão a razão do sucesso da escolha de Pêra para realizar a declinação cinematográfica do projecto multimedia de homenagem a Carlos Paredes, "Movimentos Perpétuos". É essa obsessão que une o realizador e o falecido mestre da guitarra portuguesa - a atenção minuciosa a cada pormenor, uma postura de absoluta liberdade criativa dentro de um perfeccionismo quase maníaco, expresso em Paredes através de uma depuração austera e em Pêra através de uma acumulação barroca, mas em ambos os casos trabalhando sempre à volta de um pequeno número de motivos recorrentes.

Não é, por isso, uma surpresa que, com "Movimentos Perpétuos", Pêra assine o seu trabalho mais conseguido e, paradoxalmente, também o mais acessível, mais ainda que a sua estimulante longa de ficção "A Janela (Maryalva Mix)" - o que apenas foi confirmado pelo prémio do público votado pelos espectadores que assistiram às sessões do IndieLisboa 2006 (onde ganhou igualmente o prémio de Melhor Longa-Metragem portuguesa atribuída pelo júri internacional). E fá-lo escolhendo tornar o próprio Paredes no "narrador" de uma viagem fragmentada pela sua música e pela sua carreira, através de imagens e, sobretudo, sons de arquivo - nomeadamente o registo de um concerto portuense de 1984 onde o músico antecedia cada interpretação com longas explicações do seu método de trabalho, aqui usadas como fio condutor narrativo de um documentário que recusa a linearidade habitual do género.

Tecnicamente, "Movimentos Perpétuos" é, de facto, um documentário - há recurso a imagens de arquivo, depoimentos (de Rui Vieira Nery, José Jorge Letria, Paulo Rocha, Malangatana ou José Carlos Vasconcelos), que contextualizam a importância musical e histórica de Paredes no Portugal antes e depois do 25 de Abril. Mas é só tecnicamente: todo esse trabalho de recolha documental é estilhaçado, multiplicado, fragmentado, retrabalhado por Pêra, que o usa como fundação para erigir um "mundo paralelo" onde o passado se transmuta num presente contínuo, com imagens contemporâneas nossas e outra "found footage" retirada dos arquivos pessoais de Pêra (os "cine-diários") a apresentarem exactamente o mesmo grão e o mesmo tratamento visual das imagens de época. É como se a portugalidade indefinível que constitui a essência da música de Paredes - que alguém define a dado momento como uma "melancolia dourada" - continuasse teimosamente presente e não nos tivesse abandonado.

O mérito maior de "Movimentos Perpétuos", contudo, está no revelador retrato da pessoa por trás do músico, que a cortina de ruído visual que Pêra cria ao longo destes curtos 70 minutos não só não ofusca como ajuda a definir certeiramente. É conhecida a modéstia de Paredes, a sua dificuldade em aceitar os elogios que lhe eram feitos (como no delicioso episódio, contado por José Jorge Letria, do convite que Pasolini fez ao músico para compôr a música de um filme que nunca chegou ser a feito, e que Paredes acreditava piamente ter sido um engano do realizador). Mas é uma coisa ouvir isso daqueles que o conheceram e outra senti-lo no tom discreto da sua própria voz, como Pêra nos mostra ao montar a narração exclusivamente à base da sua voz, ao dar-lhe a voz que completa na perfeição a sua guitarra, que nos devolve o homem simples por trás do génio. A câmara endiabrada do realizador funciona como uma espécie de negativo revelador da personalidade do músico: é quase um encontro predestinado entre Pêra e Paredes, ecoando através dos tempos uma mesma lusitana resistência à facilidade e à evidência. O filme de Pêra, como a música de Paredes, é um prazer adquirido que se descobre e se degusta com o tempo.

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