Tal filho, tal pai

A memória de um filme como a "Promessa" (1996), a primeira longa-metragem de ficção que os documentaristas belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne consideraram lograda, pode estar algo nublada nos espectadores portugueses; ou não haver memória alguma, por o filme não ter sido, pura e simplesmente, visto. Lembrando então: era o filme de um filho. Chamava-se Igor, era louro e tinha uma obstinação. E um sorriso que se abria, com uma falha num dente.

Igor vivia com o pai, e a sua obstinação estava ao serviço dele, mergulhado no submundo da imigração clandestina belga. Quase que se diria que, na verdade, era Igor, a criança, a estrutura sólida de Roger, o adulto (os traços cortantes de Igor, por oposição volume informe do pai - interpretado por Olivier Gourmet). Com a mãe como figura ausente, estava traçado o quadro de uma fidelidade que parecia inquebrável; quase incestuosa. Igor era o "executivo" desse pai de mãos sujas.

Mas um dia, coincidente com um acidente mortal que vitimizava um imigrante africano, mão de obra barata que o pai explorava, o filho ganhava consciência e escolhia outra vida e outra família. Era a reviravolta da personagem e era a altura em que "A Promessa" se transformava em relato mítico de iniciação à idade adulta.

Igor, cabelo louro, sorriso partido por uma irregularidade nos dentes, mas nem por isso menos aberto, era interpretado por Jérémie Renier, 14 anos.

Dez anos depois, e durante o processo de trabalho que conduziria à sua mais recente longa-metragem, "A Criança", um dos Dardenne, Luc (licenciado em Filosofia), telefonou ao outro Dardenne, Jean-Pierre (comediante de formação), a perguntar-lhe se ele se lembrava daquele sorriso. "Talvez ele ainda tenha esse riso, esse riso de rapaz de 14 anos... Não seria mau...", disseram, como contaram em entrevistas.

Jérémie, contactado, tinha dúvidas. "Eu já não sou o Igor". Jérémie tornara-se entretanto actor, e estava com receio que se tivesse tornado demasiado actor para os Dardenne - que, ao invés, soltam "criaturas" ao mundo, obrigam-nas, a elas que não aprenderam as artimanhas de uma câmara, a um trabalho árduo que nada tem a ver com o tratamento dado a estrelas de cinema... Mas os Dardenne tiveram a certeza. Tinham encontrado de novo Igor. tal filho, tal pai. "A Criança", onde Jérémie Renier se chama Bruno, não tem de ser visto necessariamente como a continuação da vida da personagem de Igor de "A Promessa", com o filho agora tornado pai - embora numa sequência, quando perguntam a Bruno qual o seu apelido, ele (Jérémie, o actor), responde, numa espécie de reconhecimento de uma linhagem, "Michaux", que, como têm lembrado os Dardenne, era o nome da personagem de "A Promessa".

Nem é preciso saber da existência anterior de Igor para melhor conhecer Bruno. O que interessa (e isso sente-se, mesmo que não se saiba a história que está por trás) é que há de novo uma energia na personagem que vem recentrar o cinema dos irmãos Dardenne. Um feliz reencontro, então.

É que, depois de "Rosetta" (1999), o filme seguinte a "A Promessa" e até agora a obra-prima da dupla, o cinema de Jean-Pierre e Luc Dardenne ressentiu-se da devastação deixada à sua passagem por essa anti-heroína proletária que, contra tudo e contra todos, só queria encontrar um lugar - um emprego. Não foi só o Festival de Cannes (o palco de uma Palma de Ouro tão corajosa quanto polémica, entregue por David Cronenberg, presidente do júri) que parecia território devastado por uma explosão no dia a seguir ao palmarés - o balanço do festival desse ano foi feito em situação de pós-trauma, porque "Rosetta" passara à última hora e arrasara favoritismos (incluindo o de Almodóvar e de "Tudo sobre a minha Mãe") e porque a subida ao poder do proletariado levou todo um festival, e com ele a imprensa, a questionar a sua política de palmarés e as obrigações em relação ao "glamour".

"Rosetta" tinha a precisão de um míssil - por Rosetta, a personagem, e pelo dispositivo dos Dardenne, com a câmara a colar-se de tal maneira à personagem que não era o filme que puxava por ela, não era o filme que a criava, por assim dizer, era ela que se impunha como ficção e criava o filme. Que, consoante os momentos, os gestos e as pulsões da personagem, era obrigado a tomar várias formas, do filme policial ao filme de terror, do filme de guerra - Rosetta em guerra com o mundo - ao "western" (hipótese não assim tão delirante, o território da criatura era um baldio que se chama. nem mais nem menos, "Grand Canyon"...). E "Rosetta" terminava não quando o filme queria terminar, mas quando a personagem queria parar, e se rendia (provisoriamente?).

"O Filho" (2002) foi a ressaca previsível. Não que os Dardenne transformassem aí o seu dispositivo em involuntária paródia - mas era quase isso, aquela forma de colar a câmara ao corpo, à nuca, das personagens era, para os mais cínicos (e cinismo é coisa alheia ao universo dos irmãos belgas), um efeito de assinatura fetichista próximo da imagem de "marketing" - aliás, nos "dossiers" de imprensa os irmãos pediam por todos os santinhos que não se revelasse o final do filme. Ou seja: naquela história da misteriosa obsessão de um homem por um adolescente, o sistema Dardenne transformava-se em máquina manipuladora (de suspense?) a rodar sobre os seus próprios efeitos. Não era de espantar, repete-se: depois do pico "Rosetta", era natural que sobrasse em dispositivo o que faltava em capacidade para encontrar de novo uma empatia e uma justeza de tom (entre cineastas e personagem). E tudo parecia, afinal, um mero jogo às escondidas.

Há, ainda, algo disso - dessa dificuldade, de uma máquina de cinema que já parece maior do que as personagens - na primeira parte de "A Criança", onde existem sobretudo "efeitos de cinema". Mas depois de Bruno/Jérémie vender o filho, algo se passa em "A Criança": os Dardenne encontram a sua personagem. Passa a ser, de novo, aquele admirável e comovente foco de energia acossada, movimento puro e obstinado. De novo é a personagem a fazer o filme. Naquele momento, com aquele gesto que faz vacilar todo o terreno moral, há como que uma tomada de consciência em relação a uma linhagem, um reconhecimento: Igor e Bruno, tal filho (num filme), tal pai (no outro). Ambos de moto.

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