Gestos e fragmentos

É inevitável ver em "Vanitas" um "testamento cinematográfico" de Paulo Rocha. Não se soubesse do estado de saúde debilitado do realizador, e isso sentir-se-ia na mesma no tom soturno desta "fogueira das vaidades" humanas, que começa no Dia de Finados e termina com a morte real de uma figura tutelar e a morte figurada de uma mulher fútil. No entanto, este filme inexplicavelmente amador é, certamente, a maior decepção do percurso errático do autor de "Verdes Anos". Amador visualmente, primeiro, porque "Vanitas" foi rodado em video digital e tanto o trabalho de fotografia como a transcrição para película traem uma insegurança e inexperiência formais surpreendentes num cineasta veterano.

Amadora narrativamente, depois, pelo modo como a história de ressonâncias oliveirescas/agustinianas é sabotada por uma total desatenção à progressão narrativa, com um sem-número de buracos ainda por cima "resolvidos" na sinopse incluída no dossier distribuido à imprensa mas completamente ausentes do filme.

É pena que assim seja, porque há muito de intrigante em "Vanitas". Em primeiro lugar, o eco assumido das anteriores longas-metragens de Rocha, "O Rio do Ouro" (1998) e "A Raiz do Coração" (2000), com as quais partilha a argumentista Regina Guimarães, as actrizes Isabel Ruth e Joana Bárcia e uma ligação expressiva a um local, a um espaço. "Vanitas" é um filme do Porto como "A Raiz do Coração" o era de Lisboa ou "O Rio do Ouro" do Douro, com a noite de São João como ponto central da narrativa que Regina Guimarães compôs a partir de reminiscências das famílias burguesas da cidade (entre as quais a sua própria). Depois, a própria opção de rodar em digital - assumida pelo realizador como uma aprendizagem, uma procura, uma tentativa de descoberta das possibilidades que um novo formato abre - poderia ser uma mais-valia estimulante.

Porque é raro que um filme ambientado no universo da moda surja com esta imagem queimada, suja, que vê para lá das aparências (esta, afinal, quer-se a história de uma espécie de "fogueira das vaidades"), e porque o ritmo diferente da rodagem em digital permite aos actores um outro trabalho de construção das personagens e das cenas (e isso sente-se abertamente nos melhores momentos do filme). Mas essa aprendizagem acaba por se exibir tristemente a si própria, numa inesperada demonstração de fragilidades que tanto podem ser as de quem está a descobrir como dominar uma nova linguagem como as de quem já não sabe como articular a antiga num novo contexto.

"Vanitas" pretende ser a história da transformação de Mila (Joana Bárcia, a recordar Maria de Medeiros) de modelo fútil, protegida da estilista que a adoptou como filha (uma gloriosa Isabel Ruth), em mulher forte e determinada, contada em tom de saga dinástica duriense, com Mila, borboleta à volta da qual gravitam homens seduzidos pela sua beleza, a transformar-se numa digna herdeira da mulher que quis ser sua mãe. Poderia ser uma "woman"s picture" dos anos 1940, mais do que a anunciada meditação sobre a vaidade, mas "Vanitas" acaba por nunca conseguir coalescer num objecto coerente. Há, apenas, um bom ponto de partida que se vai perdendo lentamente, deixando os actores entregues a si próprios sem personagens para defender - e é mesmo só por um elenco que se entrega com uma generosidade infinitamente superior ao que o resultado final merece que "Vanitas" não descamba no desastre absoluto que se começa a anunciar na inexplicável sequência da noite de São João. A partir daí, o frágil esqueleto narrativo que ainda ia existindo é completamente abandonado, como se Paulo Rocha tivesse perdido o rumo e já não soubesse para onde levar o filme. Ficam flashes, muito poucos, muito a espaços, do que se perdeu (Isabel Ruth no seu atelier, Joana Bárcia no barco que atravessa o rio). Mas talvez esse filme nunca pudesse ter existido.

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