Não dês bronca

É para coisas destas que os prémios deveriam servir: para chamar a atenção para objectos que de outra maneira nos passariam ao largo injustamente. Se o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro não tiver servido para outra coisa, já terá justificado a atenção a esta fita sul-africana que, por baixo do "look" estilizado à la "Cidade de Deus", esconde um dos mais conseguidos melodramas clássicos de puxar à lágrima dos últimos anos, sobre a aprendizagem da responsabilidade e da decência por parte de um marginal adolescente dos bairros de lata de Joanesburgo.

Tsotsi, calão local para "gandulo", é o chefe endurecido pela vida de um gangue de ladrõezecos de tuta e meia, esquecidos da vida que desaguaram nas favelas da capital sul-africana. No exacto momento em que o cerco começa a apertar e os roubos por esticão começam a descambar para o assassinato a sangue-frio, Tsotsi, órfão não exactamente abandonado (como se descobrirá mais tarde) mas insensibilizado pela violência da sobrevivência, rouba um carro, deixando a condutora gravemente ferida. Só que, ao fazê-lo, rapta também sem o saber o bebé da senhora, a dormir no banco de trás do carro - e, com uma criança nos braços, tudo muda radicalmente para Tsotsi, para quem a situação torna clara a pergunta que um dos seus capangas, Boston, lhe fez, antes de levar um enxerto de porrada por ter articulado algumas verdades dificeis de engolir: "sabes o que é a decência"? O enxerto de porrada não é solução quando se trata de alimentar uma criança.

Contado desta maneira, o terceiro filme do realizador Gavin Hood, adaptado do único romance escrito pelo aclamado dramaturgo sul-africano Athol Fugard, parece um melodrama lacrimejante do mais rasteiro. O segredo está precisamente em transcender essa rasteirice que espreita na própria natureza da história, que quase exige o pacotinho de lenços de papel no braço da cadeira, pelo meio de uma colagem razoavelmente abusiva ao modelo visual de "Cidade de Deus". Porque aqui há filtros fotográficos até à quinta casa, gruas a passearem sobre as barracas, hip-hop sul-africano a toda a hora na banda-sonora, montagem rápida nos primeiros 15 minutos - mas em breve se percebe que é um mero "caderno de encargos" para ocidental ver. Uma vez cumprido, Hood desacelera o efeito e engrena a história como um percurso de redenção concebido como aprendizagem da moralidade por parte de um menino de rua que nunca soube o que era ter uma família e lentamente se apercebe daquilo que acaba de negar sem o saber ao bebé. A partir desse momento, a canseira intrusiva da banda-sonora e os tons saturados da fotografia de Lance Gewer deixam de ter importância e "Tsotsi" transforma-se naquilo que sempre deveria ter sido: uma história simples de uma criança perdida que procura reencontrar-se, ganha pela sinceridade de um elenco empenhadíssimo, com longuíssimos grandes planos de Presley Chweneyagae (a revelação que interpreta Tsotsi) ou do rosto belíssimo de Terry Pheto. É deles, e da ausência de peripécias rocambolescas e excessos telenovelescos na história, que se desprende a emoção necessária para embalar o espectador.

É fita feita para agradar ao público, sim, e indecisa entre fazê-lo prometendo algo que não é (é o tal lado "Cidade de Deus", como se só injectando a adrenalina estas histórias interessassem o grande público) ou assumindo frontalmente o melodrama popular à moda antiga. É nessa dinâmica algo esquizofrénica que "Tsotsi" se torna um objecto intrigante, ainda por cima proveniente de uma cinematografia que desconhecemos quase por completo. Um está por trás do outro, mas é o melodrama que ganha o dia, o dilema moral que ressoa muito para lá do bairro da lata e da luta de classes. É muito provável que muitos espectadores partilhem no final as lágrimas de Tsotsi. Isso não é necessariamente mau.

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