Kiss kiss bang bang pulp fiction

Tomem muita atenção - antes do sublime genérico estilizado de Danny Yount - ao prólogo de "Kiss Kiss Bang Bang", em que um mágico adolescente encena sem grande sucesso o truque de serrar a assistente ao meio. E tomem muita atenção porque naquele prólogo que parece pouco ter a ver com o resto do filme está, inteirinha, a sua essência de truque de magia, de inspirada prestidigitação: a estreia na realização de Shane Black é uma demonstração virtuosa de controle dos elementos centrais de um filme para criar uma grande ilusão onde nada é aquilo que parece ser. É uma aparente desconstrução meticulosa e milimétrica de algo que, na realidade, está meticulosa, milimetrica e deliberadamente construído. É uma estonteante harmonia de contrários que funciona, ao mesmo tempo, como homenagem afectuosa ao "film noir" clássico e demolição acintosa de todos os seus lugares-comuns, meta-meditação sobre os códigos tradicionais do "screenwriting" de Hollywood que tira um prazer infinito de os arrasar metodicamente, filme de argumentista que é também um brilhante exercício de estilo de realizador e sátira sardónica à ubiquidade do DVD que desmancha com prazer adolescente as falácias todas da longa-metragem. O mais importante, contudo, é que é também 100 minutos do mais inteligente entretenimento que Hollywood nos deu nos últimos tempos e uma carta de amor envenenada à Meca do Cinema. como um qualquer philip marlowe. Tudo isto se explica em duas palavras: Shane Black. Em 1987, Black reinventou o "buddy movie" no argumento de "Arma Mortífera" e tornou-se no guionista da moda em Hollywood - depois do insucesso de "A Profissional" (1996), de Renny Harlin, remeteu-se ao silêncio, quebrado agora pela sua estreia na realização, e explicado pela necessidade de reencontrar o prazer dos seus primórdios de argumentista, perdido à medida que se deixou seduzir pela engrenagem dos estúdios - e o romance policial, que desde sempre foi uma das suas influências, era a escolha evidente. Daí que "Kiss Kiss Bang Bang" se construa segundo a lógica tradicional do "film noir", citando Raymond Chandler (o filme divide-se em cinco "capítulos" que retiram o seu título a livros do escritor) e retirando parte da trama a um romance escrito nos anos 40 por Brett Halliday, e perpasse por todo o filme - produção de orçamento modesto apadrinhada por Joel Silver, produtor das "Armas Mortíferas" e da trilogia "Matrix" - uma sensação de ajuste de contas com uma certa Hollywood que vive de fachadas, resultado evidente da "travessia do deserto" que o seu autor fez nos últimos anos. Ou não fosse a heroína ("femme" só de aparência "fatale" interpretada pela revelação Michelle Monaghan) uma aspirante a actriz que, ao fim de uma década na cidade dos anjos, continua sem ter conseguido deixar a sua marca.

Mas quem não o conheça que o compre - e tudo aquilo que marcara a encarnação "vendida a Hollywood" de Shane Black está aqui inteirinho, com o seu dom para o diálogo bem sacado a ser amplificado pela ideia genial de pegar na voz "off" típica do "noir" e convertê-la numa espécie de comentário-audio de DVD, com (o bem regressado em grande forma) Robert Downey Jr. a ir contando a história como um qualquer Philip Marlowe, mas sempre consciente do seu estatuto de narrador omnisciente que conta a história à posteriori. Ou na ideia no mínimo desconcertante de ter como parelha central um detective privado assumidamente homossexual que dá pela alcunha Gay Perry (Val Kilmer) e um ladrãozeco promovido a actor (Downey Jr.), parceria que se auto-define como "o paneleiro e o nova-iorquino", ainda por cima interpretada por dois actores mais falados nos últimos tempos pela controvérsia das suas vidas privadas do que pelo seu trabalho artística. A narrativa - tão rebuscada como a dos "noirs" clássicos, com duas investigações separadas (o aparente suicídio da irmã da heroína, abusada sexualmente em criança, e o assassínio de uma cliente do detective) que na realidade estão interrelacionadas - é, claro, mero pretexto para explorar a inserção nas coordenadas do "noir" do "buddy movie" subversivo que Black cristalizou e para celebrar o seu extraordinário talento de dialoguista.

noir, i love you.

Acima de tudo, "Kiss Kiss Bang Bang" é uma extraordinária carta de amor ao "noir", que cria a enorme ilusão de o estar a estilhaçar sem apelo nem agravo mas que, por trás dessa fachada, constrói no maior rigor uma clássica narrativa do género - um filme que, ao mesmo tempo que os destrói com júbilo quase infantil de criança birrenta, presta vassalagem e respeito aos seus códigos e desmonta com mal disfarçado prazer as releituras pós-modernistas. É uma fita enganadoramente simples e muito mais densa do que parece à primeira vista, que nem sempre consegue resistir a um certo exibicionismo excessivo das suas referências e que por vezes se parece perder no artificialismo de ser deliberadamente referencial; mas esse exibicionismo nasce também da euforia de ter aprendido bem a lição sem nunca cair no erro de a seguir à risca (e a modéstia e o funcionalismo correcto da produção, perfeita tradução contemporânea da eficácia da série-B clássica, estão aí para o demonstrar).

Podia ser um filme de autor "trash" ou um filme de Hollywood a fingir-se de autor, mas não, é ao mesmo tempo um filme de Hollywood e um filme de autor e um filme de amor pelo cinema. E há uma "cereja no topo do bolo" de grande ironia para aqueles que estejam para aí virados - o título, "roubado" a uma colecção de ensaios da crítica americana Pauline Kael (que, por seu lado, o "roubou" a um cartaz italiano para um filme de James Bond...) em cuja introdução ela se queixava de que beijos e tiros era o apelo básico do cinema mas raras vezes um filme ia mais longe do que isso. "Kiss Kiss Bang Bang" é "só" isso (e não quer ser mais do que isso), mas parece disposto a provar a Kael que ser "só" isso pode ser muito mais do que parece. Escusado será dizer, este filme é uma surpresa irresistível.

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