A culpa vive aqui

O espectador bem pode esperar que a história comece. Para que ele se esqueça da sua condição de espectador e se precipite rapidamente para a suspensão da descrença: ficção! narrativa! Mas não. O primeiro plano, que inclui genérico, é longo, enquadra da rua um banal bairro da classe média - a nossa atenção talvez se dirija para uma casa em particular... -, há transeuntes que passam, uma espécie de acordar da banalidade que desliza pelas ruas (podia ser tudo captado por uma câmara de vigilância), mas quando é que o filme começa, e quando começamos a dizer isso a nós próprios (e se calhar pode um espectador lançar a alta voz), "E então?!", ouvimos, como eco, a voz daqueles que serão os protagonistas do filme, que se interrogam também sobre essas imagens.

Assim já não sabemos para onde olhamos, onde estamos, o que é que vemos, quem filma o quê, e lá se vai a suspensão da descrença. A partir daqui, "Nada a esconder" contagia o espectador com o vírus da desconfiança. Estaremos sempre alerta no filme de Michael Haneke, é a condição irreversível de se ser espectador aqui - não era em "Funny Games" que um dos assaltantes de uma casa familiar se virava para o lado de cá do ecrã e disparava: "Quer apostar que esta família estará morta amanhã às 9 da manhã?"

E a história (daquele primeiro plano) é esta: Anne e Georges Laurent, ele apresentador de um programa cultural, ela trabalhando para uma editora (Daniel Auteil e Juliette Binoche), acabaram de receber um vídeo que mostra que alguém está a olhar para a quietude daquela casa familiar.

Que alguém os vigia e quer que eles saibam disso. As brechas começam a abrir - há sobretudo uma hostilidade não silenciosa, mas expectante, na mulher (Binoche), que não compreende o que está em causa, e suspeita que o marido (Auteil) sabe mais do que quer contar. A crispação do casal aumenta quando os vídeos dão lugar a desenhos de um "gore" infantilizado (traços e rajadas de sangue) e a telefonemas anónimos.

A história (por trás destas imagens, sempre banais, todas iguais, todas assépticas, como se todas se equivalessem - então uma imagem tem "tudo a esconder", se calhar outra, se calhar aquilo a que chamamos "realidade"!) chegará a um homem, argelino, Majid, que em tempos foi um irmão adoptado de Georges, e recuará no tempo, com "flashback", a um tempo de infância eterna que o racismo e o "problema argelino" em França interrompeu com uma traição - Georges, criança, traiu Majid, criança. É esse passado que agora assombra Georges? Mas quem o filma, quem desenha, quem telefona? Majid? Se calhar não.

Há um último plano. Fixo, como o primeiro. Mas não só inicialmente insondável. Escadarias de uma escola, que se vão esvaziando, para notarmos finalmente dois rapazes que falam. Um é o filho de Georges. O outro é filho de Majid. Um "complot" da nova geração contra o pecado dos pais? (nos filmes de Haneke os jovens, as crianças, têm esse efeito perturbador, são elas que rompem o tecido social). Não sabemos do que falam. Michael Haneke tirou-nos a possibilidade de ouvir o que dizem. O comentário social, a análise de tese, às vezes demonstrativa (sempre ecrãs de televisão a mostrarem o "estado do mundo", a divisão entre o Ocidente e o mundo árabe), o "thriller", as cenas da vida conjugal, combinaram-se numa experiência de que nós, espectadores, fomos cobais (quando só queríamos a suspensão da descrença...). O vírus da culpa foi-nos inoculado. Como se tivéssemos sido violados até chegarmos a uma nova condição, a uma nova consciência de espectadores: a culpa de quem "vê" vive aqui.

Sugerir correcção
Comentar