A descida a alegoria da caverna

Não se deixem enganar pela aparente parecença de "A Descida" com o recente (e muito menos interessante) "A Caverna". A única semelhança é no cenário claustrofóbico, e "A Descida" ganha por KO antes do fim do primeiro assalto - com a vantagem adicional do segundo filme do inglês Neil Marshall apresentar uma solidez de construção que não é muito habitual em filmes de género (geralmente feitos a despachar), e com a bem-vinda mais-valia de ser uma coisa absolutamente séria. Isto não é uma fita de terror adolescente, não é uma "remake" de qualquer coisa que já foi feita, não se recomenda a alminhas susceptíveis e é tudo menos "light" - isto é um filme de terror com sangue a rodos, suores frios e muitas tripas à moda inglesa, inscrevendo-se na grande tradição do género mas sabendo actualizá-la e musculá-la para os dias que correm.

Não é exactamente surpreendente que assim seja, como sabe quem viu o anterior filme de Neil Marshall - "Dog Soldiers", uma reinvenção inspirada do mito do lobisomem que colocava soldados ingleses a combaterem um clã de lobisomens nas Highlands escocesas, exibido no Fantasporto 2003 mas que, apesar de comprado para exibição em Portugal e de mostrado nas sessões inaugurais do Cine-Clube de Terror de Lisboa, nunca viu estreia em sala nem distribuição em DVD. Marshall chama a "A Descida" o "filme-irmã" de "Dog Soldiers", declinando uma mesma situação de partida num outro cenário e no sexo feminino, ejectando o humor série B que marcava o predecessor: aqui não há alívio cómico de espécie nenhuma, e a tensão exterior do ambiente hostil é amplificada pelas tensões internas no grupo de seis amigas aficionadas dos desportos radicais que partem para uma expedição espeleológica e dão por si prisioneiras de um sistema de cavernas desconhecido, povoado por algo de malévolo. A caverna de Platão era um espaço de mistificação povoado por meras sombras da realidade mas funciona aqui como um espaço de revelação onde Marshall não esconde nunca as citações que faz nem as influências que tem, mas tem o bom senso de as usar apenas como influências e nunca como soluções de recurso. As suas heroínas são pessoas e não estereótipos - mulheres de acção que gostam do risco, mas não escondem a sua vulnerabilidade por trás dos músculos, num equilíbrio que por vezes recorda a Sigourney Weaver dos dois primeiros filmes da série "Alien", e o ambiente geral está mais próximo da atmosfera malsã de "Fim-de-Semana Alucinante", de John Boorman - mas, supremo elogio, a viragem de fita de suspense claustrofóbico para o filme de horror assumido, feita de forma surpreendentemente directa para o que é habitual, apenas empurra o filme para um patamar superior. A inteligente e atenta construção narrativa de Marshall, onde mesmo o detalhe mais insignificante se revela de importância capital, vai lentamente desbastando camadas até chegar à essência e recusa terminantemente deixar para trás a espessura das personagens à medida que o grau de sangria vai aumentando.

Sabendo que o cinema de género nos deu estilistas tão distintos como Brian de Palma, John McTiernan ou David Cronenberg, não parece inteiramente descabido prever que Neil Marshall, se continuar nesta veia, se possa vir a encontrar em tão digna companhia futuramente. "A Descida" é daqueles casos em que não é nada má ideia começar já a descobrir um realizador que ainda há de ter muito para dizer no futuro.

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