Nossa senhora da solidão

Mirabelle (Claire Danes) é balconista num armazém de luxo. Mora numa casinha modesta, tem um carrinho modesto, um empréstimo para pagar, faz desenhos a carvão como "hobby" que não lhe dá grande dinheiro.

Toma anti-depressivos para não sucumbir ao desespero surdo de uma vida solitária e rotineira regida pelos ritmos do emprego maçador ao balcão das luvas e da gata a que tem de se dar de comer (Sylvia - faria sentido que fosse de Plath, mas nunca o saberemos).

Até que, um dia, outras solidões começam a rasar a sua: primeiro a inexperiência romântica de Jeremy (Jason Schwartzman), protótipo do adolescente tardio que vagueia pela vida sem saber bem para onde vai, com quem se cruza na lavandaria e que parece ser uma receita para o desastre. Depois (mas este depois é quase ao mesmo tempo), a segurança de Ray (Steve Martin), um empresário de sucesso que se afinca a seduzi-la discretamente e talvez não queira mais do que apenas uma relação passageira, um recanto confortável como um sofá. Entre um e outro, Mirabelle não hesita em escolher. Mas o amor não tem, exactamente, uma lógica, pois não?

Podia ser um triângulo amoroso, mas não é - ele desenha-se, mas nunca se concretiza. Podia ser uma comédia romântica, mas não é - porque estas vidas não são contadas como se estivessem numa comédia romântica (e o filme também não o quer ser, ao contrário do que o título português, tradução/traição do original "Shopgirl", dá a entender). Podia ser um dramalhão ou uma "women"s picture" - porque esta é a história de uma mulher em busca de si mesma, porque há aqui uma estilização que remete muito para os anos de ouro do género. Mas não é nada disso: "Uma Rapariga Cheia de Sonhos" (título português de comédia romântica que pouco tem a ver com a neutralidade infinita de "Shopgirl") habita aquele limbo imponderável entre géneros, escolhe o território difuso do que fica por dizer e por mostrar nos intervalos do que se diz e do que se faz, recusa histrionismos, não está nunca onde se espera que vá estar. É um filme inabalavelmente romântico, mas de um romantismo suspenso, zen, desencantadamente pragmático, sobre as coisas que não se percebem porque não se querem perceber, as ilusões que nos criamos, não porque acreditemos nelas mas porque temos de nos agarrar a qualquer coisa para não soçobrarmos. "Uma Rapariga Cheia de Sonhos" não é um triângulo amoroso: são três solidões que procuram deixar de o ser, nem que para isso tenham de mentir a si próprias e de passar ao lado, talvez sem o saber, daquilo que realmente interessa.

Encontrado na tradução

Há um cheirinho de "Lost in Translation" (e, também, do desencanto amadurecido de "Flores Partidas", de Jarmusch, agora em salas) no filme do britânico Anand Tucker (televisão e o dramalhão fraternal "Hilary e Jackie"). É algo que não tem escapado aos críticos (e até mesmo aos próprios actores - Jason Schwartzman reconhece a afinidade entre os objectos), e é algo a que o próprio filme parece não querer escapar, ou não fosse a obra-prima de Sofia Coppola um daqueles objectos irredutíveis que nos fazem ainda acreditar que o cinema pode inventar novos territórios. Afinal, há Steve Martin, que, à imagem do seu contemporâneo Bill Murray, começámos por conhecer mais como comediante (e vamos vê-lo em 2006 a medir forças com o fantasma de Peter Sellers na "remake" de "A Pantera Cor-de-Rosa") do que como actor sério (apesar de, já há uns anos valentes, o termos visto em "O Prisioneiro Espanhol", de David Mamet), numa performance de discreta e refrigerada contenção - e é ele que aqui está na origem de tudo, já que o filme é uma transposição cinematográfica da sua própria e aclamada novela, adaptada e co-produzida por ele próprio (mas não realizada porque, segundo explicou em entrevistas, gosta demasiado da sua vida para querer perder dois anos a levantar um projecto).

Em comum com o filme da Coppola, evoca-se aqui uma comum atmosfera depurada, a semelhança de um romance distante entre uma jovem ainda a construir o que quer da vida e um homem que já sabe muito bem o que não quer, uma certa aceitação do remorso, a compreensão de que há coisas que não são supostas durarem mais do que o tempo certo (que nunca é suficiente). Mas, aqui, há a discrição de uma "mise-en-scène" meticulosamente observacional, quase entomologista, toda em câmara lenta, que parece deslizar, e onde "Lost in Translation" era um interlúdio passageiro situado num limbo fora do mundo simbolizado no "jet-lag" japonês, "Uma Rapariga Cheia de Sonhos" é um ponto de passagem/paragem, um episódio de uma vida normal situada no microcosmos estilizado da América quotidiana que nunca vemos no cinema, país silencioso e subterrâneo de gente que não aparece na televisão e que vai vivendo como pode, escondida por trás das fachadas de espectáculo que lhes estão vedadas. Gente sozinha à procura de partilhar essa solidão - ou de a esquecer. Claire Danes é magnífica em explorar os cambiantes humanos dessa normalidade - a sua dignidade infinitamente dorida quando, perto do final, Mirabelle diz a Ray que tem de escolher entre "magoar-se agora ou depois" é um dos momentos mais comoventes do cinema americano recente.

Talvez mal-amado

Um clássico? Talvez ainda seja cedo para o dizer, embora, se o for, o venha a ser da estirpe mal-amada: datado de 2004, o filme passou longos meses em pós-produção (será daí aquela voz "off" que vai e vem?) para apenas estrear nos EUA na "rentrée" 2005, onde as geralmente boas críticas não evitaram uma carreira comercial quase inexistente. E está longe de ser um filme unânime: haverá muita gente a quem o distanciamento deliberado, a aparência de ser aquilo que não é realmente (e "Uma Rapariga Cheia de Sonhos" não é, nunca, aquilo que se quer, ou que se gostaria, que ele seja; reside aí um dos seus maiores trunfos) e a sensação de ter sido apanhado "ao engano" irá afastar, outros ainda irão olhá-lo como um "ersatz" de "Lost in Translation", tentativa deliberada de repetir o irrepetível. E quem leu a novela original queixa-se do excesso de atenção dado ao terceiro vértice do quase-triângulo, Jeremy (Jason Schwartzman em mais um dos seus "slackers" marca registada - ver texto nestas páginas), personagem de menor presença no texto literário.

No entanto, aqueles a quem o objecto seduzir deixar-se-ão ficar prisioneiros dos seus encantos aveludados de história de amor a fazer-se à vida, mais próxima do mundo real do que todas as comédias românticas que se procurem. Porque o amor e a solidão são reversos de uma mesma medalha e é isso que "Uma Rapariga Cheia de Sonhos" insiste, sempre, em nunca nos deixar esquecer - e porque o "final feliz" nunca é igual ao das comédias românticas.

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