Porno Hollywood

Era uma vez um pequeno filme feito por tuta e meia que se torna num sucesso de bilheteira sem precedentes e entra no vocabulário cultural da sua época. Por si só, isto não é um fenómeno inabitual - excepto que o "pequeno filme" em questão é um porno "hardcore" de 1972 chamado "Garganta Funda".

A história de uma mulher com o clitóris fora do sítio que só com sexo oral atinge o orgasmo tornou-se num fenómeno sem paralelo na história do cinema - alegadamente um dos filmes mais lucrativos de sempre (25 mil dólares de orçamento para improváveis 600 milhões de dólares de receitas de bilheteira), acabaria por tornar-se no ponto G do debate sobre a liberdade de expressão na América dividida do Vietname e do presidente mal-amado Richard Nixon, "cause célèbre" perseguida pelas instituições governamentais.

Essa história é a força de "Dentro de Garganta Funda", documentário de Fenton Bailey e Randy Barbato. E também a sua fraqueza: tanta coisa aconteceu à volta de "Garganta Funda" que é impossível abordar tudo num só filme. A dupla de documentaristas bem se esforça por meter o Rossio na rua da Betesga, mas as muitas implicações do filme de 1972 ainda hoje ressoam e não cabem em apenas hora e meia de documentário. Tudo por causa de um clitóris na garganta - evento anatomicamente improvável, mas tornado em metáfora revolucionária do direito feminino a uma sexualidade própria e activa, e chave que abriu uma caixinha de Pandora.

Godard em más companhias.

E, contudo, no princípio, houve apenas um desejo de cinema - de Gerard Damiano, ex-cabeleireiro nova-iorquino que tinha gosto e vontade de filmar, e se virou para o porno por ser a única porta de entrada para quem nunca tinha tido educação formal que lhe abrisse os estúdios. O porno era uma porta de entrada "no-budget" onde muitos (como Wes Craven) começaram, um patamar abaixo dos "quickies" de Roger Corman e antecipando em alguns anos o "faça-você-mesmo" de muito do moderno cinema independente americano. Arte? Quem fazia estes filmes, diz no documentário Ron Wertheim (ele próprio realizador de pornos), levava-os tão a sério como Jean-Luc Godard. Mas dificilmente o "sistema" aceitaria estes filmes amadores feitos a contar tostões. Apesar da candura ingénua de Damiano e da vedeta Linda Lovelace, apregoando à época uma revolução que veria o porno ganhar paridade com a produção "séria" (e que nunca chegou), o género era de difusão limitada e confidencial, "disfarçado" de "filmes educacionais" com fins "demonstrativos" das práticas sexuais entre um homem e uma mulher. O facto do circuito de produção e exibição do porno ser controlado pelo crime organizado não abonava a seu favor, e contra isso a ingenuidade de meia-dúzia de amadores pouco poderia fazer.

Para lá do salário ganho durante a rodagem, ninguém da equipa lucrou realmente com o colossal êxito de "Garganta Funda"- quando se tornou evidente que o interesse do público ultrapassava largamente o habitual para o género e que havia ali dinheiro em caixa, Damiano ver-se-ia forçado a ceder a sua quota no filme aos sócios (um dos quais, Louie Peraino, fazia parte de uma das mais poderosas "famílias" nova-iorquina). Bailey e Barbato não escondem a conexão mafiosa, embora ela acabe por ficar mais esboçada do que explícita - como fica exemplificado pelas truculentas reticências de Arthur Sommer, exibidor de Miami, em especificar o que quer que seja para a câmara.

Tudo isto por causa de um filmezinho pitoresco rodado em Miami numa semana, com um orçamento mínimo e uma série de cenários improvisados em cima do joelho. Apesar do furor, nunca Damiano disse publicamente que "Garganta Funda" era um bom filme. Tinha apenas o "gimmick" da capacidade prodigiosa de uma mulher, Linda Lovelace, acomodar na boca a totalidade de um órgão sexual masculino - capacidade alegadamente aprendida por "hipnose" praticada pelo seu esposo/"empresário", Chuck Traynor. Impressionado com a proeza, Damiano escreveu, num fim-de-semana, o guião do filme. Tal como na Hollywood clássica, "Garganta Funda" era um veículo à medida de uma actriz.

Foi, ironicamente, também à volta de Lovelace que o documentário começou - o projecto original do produtor Brian Grazer ("Apollo 13", "Uma Mente Brilhante", "8 Mile") era um "biopic" de Lovelace, com Angelina Jolie anunciada para o papel. Mas rapidamente Grazer percebeu que a história de Lovelace, Linda Boreham de seu verdadeiro nome, não sustentaria um filme. A actriz apenas filmou mais duas ou três vezes e afastou-se do meio, refazendo a vida longe do porno, e acabaria por renegar publicamente a sua participação no filme como uma violação pública forçada pelo então marido. Acusação negada por quem assistiu à rodagem - Traynor, contratado como assistente de produção, nem estaria no "plateau" aquando das cenas de sexo. No final da década de 70, Lovelace acabaria mesmo por aliar-se às feministas que entretanto se haviam voltado contra o filme, acusando-o de exploração mercantil e objectificação do corpo feminino. Mas as suas constantes mudanças de atitude sugerem apenas uma mulher inquieta, em busca de alguém, de alguma coisa ou talvez apenas de si própria.

Pouco antes da sua morte num acidente de automóvel, em 2002, Linda Lovelace aceitou finalmente usar por uma vez a sua reputação em proveito próprio, fazendo uma sessão de fotos eróticas por dinheiro. Numa das mais tristes ironias denunciadas por Fenton Bailey e Randy Barbato, as actuais vedetas do porno confessam a sua ignorância sobre a pioneira que lhes abriu as portas. As respostas foram obtidas numa cerimónia de prémios da comunidade do "adult entertainment", celebrando a transformação do negociozinho sórdido com ligações criminosas numa indústria rentável, uma Hollywood "do outro lado do espelho", interdita a menores de 18 anos, muito ajudada pela ascensão do vídeo - com o desvio do espaço público para o espaço privado, descobrira-se a palavra mágica para a multiplicação dos lucros. Gerard Damiano não parece muito feliz com esse amargo triunfo do porno a que as vicissitudes do seu filme muito ajudaram- para o realizador, hoje reformado, a indústria reduziu-se a um "produto" formatado, recorrendo a tarefeiros e dispensando "cineastas" como ele que procuravam dar uma outra dimensão ao sexo. (Nada que não se pudesse dizer também de Hollywood.) O idealismo do desejo de cinema de Damiano, percebe-se, continua intacto, mesmo depois de todos os processos.

porno chic.

Os processos constituem, aliás, o cerne da importância histórica de "Garganta Funda" (já que, em termos cinematográficos, estamos mais ou menos conversados). Uma das mais provocantes teses do documentário de Bailey e Barbato é a de que o combate dirigido contra o filme o tornou na primeira vítima da ascensão gradual da "maioria moral" conservadora norte-americana, que suprimira pouco antes um relatório científico que não encontrara nenhuma prova que a pornografia afectasse negativamente o comportamento humano. Ao querer impedir a sua difusão, alegando que propagava uma sexualidade errada e moralmente indefensável, os tribunais acabariam por apenas amplificar o impacto público do filme e erguê-lo a improvável porta-estandarte do direito à liberdade de expressão - direito defendido por vedetas da Hollywood liberal como Jack Nicholson e Warren Beatty, mas que ressoou com o individualismo americano, sempre muito cioso da sua privacidade. Num dos segmentos de reportagem de época usados no documentário, surge uma digníssima matrona de meia-idade saindo de uma sessão, defendendo que "vim ver um filme porco porque quis e ninguém tem nada que me dizer que não posso ver um filme porco se assim o entender". Nada disto teria acontecido se "Garganta Funda" não tivesse, desde a sua estreia numa solitária sala da Times Square nova-iorquina, tido um êxito comercial fora do normal. Dos destaques dados pelos "especialistas", o filme passou à imprensa séria (Ralph Blumenthal, do "New York Times", escreveu uma peça intitulada "Porno Chic"), e com o público "mainstream" veio a atenção das autoridades, que por seu lado chamou ainda mais público, que por seu lado chamou mais polémica, e por aí fora.

Mas "Garganta Funda" era um David condenado a batalhar um Golias imbatível, sobretudo no conturbado clima político da altura, à medida que sucessivos estados americanos iam proibindo a sua exibição pública. Tudo culminou num julgamento federal encabeçado por advogados e investigadores de sólida estirpe conservadora, que não hesitaram em interpretar criativamente as leis americanas (na definição do professor de Direito Alan Dershowitz, ligado à defesa do filme). O julgamento condenou a cinco anos de prisão (numa sentença que viria a ser anulada em recurso), como "cabecilha" da alegada "conspiração para distribuir obscenidade"... o actor principal, Harry Reems.

Reems, nome artístico do nova-iorquino Herb Streicher, fora inicialmente contratado como assistente de produção mas subiu a actor principal por desistência da escolha original; a sua articulação tornou-o num herói liberal mas, no final da batalha legal, descobriu que a sua ambição de ser aceite como actor sério se esfumara, e soçobrou no alcoolismo. Hoje, sóbrio, é agente imobiliário.

rica encomenda.

"Garganta Funda" tornara-se de ponta-de-lança anunciado de uma nova revolução sexual em mártir da liberdade de expressão. Mártir estranho, é certo, que provavelmente só nos hedonistas e liberais anos 70 poderia ter atingido tal estatuto. "Dentro de Garganta Funda" não hesita em apontar os paralelos entre os contextos sociopolíticos norte-americano de 1972-1974 e 2005 (um presidente republicano contestado e inesperado domínio sociopolítico dos conservadores). A sua existência, ainda por cima financiada por um dos produtores mais poderosos de Hollywood, não pode por isso deixar de ser vista como um gesto político de uma indústria do entretenimento que sempre fez ponto de honra do liberalismo, por mais mercantilista que possa ser. E não é de todo inocente que "Dentro de Garganta Funda" seja um documentário "encomendado" - ao contrário do que é habitual, aqui foi o produtor Brian Grazer quem contratou Fenton Bailey e Randy Barbato para levar o projecto a bom porto (muito por causa do trabalho da dupla numa série televisiva britânica sobre a história da pornografia). Daí que "Dentro de Garganta Funda" seja documentarismo entendido como "entertainment", montado com o olho numa audiência "mainstream", com uma agenda claramente liberal que não é inteiramente inocente no actual clima político. Sai-se dele com uma impressão vívida da importância do filme na sua época, intrigado pela teia de acontecimentos que o rodearam, impressionado pela abrangência da investigação (que fala, literalmente, com toda a gente, de ambos os lados da "barricada") - mas também frustrado com a necessária condensação que acaba por não fazer justiça à miríade de histórias que "Garganta Funda" traz consigo e que mereceriam quase um filme cada uma.

A justiça, de qualquer maneira, acabaria por ser feita: Richard Nixon caiu como presidente, em 1974, na sequência do caso Watergate e da investigação dos jornalistas de Carl Bernstein e Bob Woodward, onde um papel importante coube a uma fonte confidencial conhecida por... "Garganta Funda". Adivinhem quem a inspirou?

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