Política e esperma na América

Do escritório à cama e de Watergate a Capra. Com passagem por fraude empresarial, bancos de esperma e Mafia. Para chegar a uma hipótese de família com homem, ex-mulher e amante dela. É o arco que a personagem de "Ela Odeia-me" tem de percorrer e não é só por isso que este (anti)herói, um executivo de uma empresa farmacêutica, anda sempre ofegante. É que pelo caminho torna-se o "cobridor" de serviço de um grupo de lésbicas que querem engravidar pelo meio mais "clássico" - sem recurso à inseminação artificial.

Para que ninguém se perca no filme, que são vários filmes: o executivo é despedido e denuncia a empresa por fraude; ninguém o emprega, mas John Henry Amstrong (Anthony MacKie, sensualidade acossada) precisa de ganhar a vida; o acaso bate à porta, na figura da ex-mulher, que se assumiu lésbica e traz amigas, e namorada, desejosas de engravidar - e dispostas a aceitar o órgão sexual masculino pelo caminho.

Começa por ser uma fantasia masculina, depois... tudo é caótico nesta sátira que junta muita coisa, mas sobretudo dinheiro, política e sexo, para tomar o pulso à América. O filme chegou ao Festival de Veneza no ano passado. Nessa edição havia ainda "The Manchurian Candidate", de Jonathan Demme, ou "Embedded-Live", de Tim Robbins, depois de já ter havido em Cannes "Fahrenheit 9/11", de Michael Moore. Ou seja, filmes contra Bush (no genérico do filme de Lee, a cara do presidente está numa nota de três dólares... valor diminuto, portanto). Spike admitiu a presença de uma vaga "anti-establishment" em Hollywood e arredores e que não havia que enganar: todos eles queriam influenciar a forma como as pessoas iriam votar nas eleições de Novembro (se acreditavam ou não que isso podia acontecer, já é mais difícil de saber). "Ela Odeia-me" chegava então a Veneza nesse "pacote", mas também arrasado pela imprensa americana. Certamente devido à mistura de registos, que fazem o filme percorrer latitudes amplas, apropriando-se da comédia sexual, do filme de Mafia (John Henry engravida a filha de um "Don" que fala como Brando em "O Padrinho"), da comédia familiar (famílias heterodoxas, que se reinventam...) ou do "thriller" político, que vai com a aventura pícara em cenário de perda.

Disparando para vários lados, este é um objecto de tempo de crise e que se coloca a si próprio em crise - isso é o que seduz, muito para além da militância anti-Bush. Cativa a dúvida, o risco de jogar com clichés. No caso das "glamour dykes" do filme, houve mesmo activistas lésbicas americanas que não gostaram da "tipificação". Mas quer aí, quer na figuração dos italo-americanos mafiosos, quer na fantasia do macho (negro) "potente", o cliché sai questionado - é John Henry que se torna objecto sexual, na verdade.

Esta relação permanente com a dúvida, com o que dificulta o percurso de uma personagem masculina, conhece mais um capítulo na obra de Spike Lee depois de "A Última Hora". John Henry é um (anti)herói da América de hoje, circulando entre os restos das certezas, desequilibrando-se nos dilemas, sem modelos de referência - não por acaso a figura do pai em cadeira de rodas é desempenhada por Jim Brown, actor que nos anos 70 corporizou a fisicalidade, a sexualidade da América negra. É o indivíduo solitário face às corporações. Num dos gestos mais explosivos do filme, o realizador equipara a personagem interpretada por Anthony MacKie ao segurança Frank Wills, o homem que denunciou o assalto ao edifício Watergate em Washington (e que morreu na miséria). A comparação não podia ter ressonâncias mais simbólicas. E se Spike Lee dá a John Henry um momento "capriano" - no tribunal, denunciando a fraude -, a cena, que é no mínimo exótica, é mais fantasia do cineasta do que crença real. A família, essa sim, é o refúgio. Mas já nada aí é o que era. Também aí Spike Lee se mostra como um dos mais atentos realizadores da América.

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