Júlio Verne: o visionário que ainda surpreende

Há um século desaparecia um gigante da literatura francesa. Com a sua obra ainda hoje por catalogar nos meios académicos, o autor de A Volta ao Mundo em 80 Dias fez sonhar gerações seguidas levando-as a viajar em todo o planeta, dentro da Terra, debaixo do mar e até na Lua

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Verne criou viagens à lua, ao centro da terra e ao fundo do mar NADAR/AFP

Júlio Verne, que tinha um fraco pela numerologia, essa não-ciência da crença divinatória nos números, talvez encontrasse algum significado oculto nas estatísticas da sua popularidade, neste aniversário da sua morte: 100 anos depois de ter morrido, a 24 de Março de 1905, em Amiens, o autor visionário de Da Terra à Lua continua a ser o escritor francês mais traduzido no mundo, com os seus livros editados em 100 línguas.

Em França, vendem-se todos os anos 100 mil exemplares das suas obras só na colecção Livre de Poche; e desde 1967, as livrarias francesas venderam nove milhões de livros de Júlio Verne.Os números atestam, em todo o caso, que o escritor continua a encantar graças aos romances que encantaram a imaginação de tantas gerações com um perfume de aventura, descobertas científicas e mundos fantásticos.

Mas, na profusão de homenagens e debates organizados em torno do centenário, uma questão permanece em aberto: que rótulo dar à obra deste profeta do século XIX? Uma importante bibliografia tem sido consagrada a Júlio Verne desde 1978, quando foram celebrados os 150 anos do seu nascimento. A partir daí, a imagem simplista daquele que, durante muito tempo, foi considerado como um "não-escritor", ou apenas como um autor popular para adolescentes, foi consideravelmente revista nos meios académicos.

"Escritor fora de todas as normas", analisa o crítico literário e universitário Pierre Picot na última edição da revista Europe-revue dedicada a Júlio Verne: "Cada um teima apaixonadamente em ler nele o que, no fundo, mais não é do que o reflexo das próprias expectativas: escritor para adolescentes, bardo do progresso técnico e capitalista, libertário mascarado, admirador de heróis das libertações políticas e coloniais, reaccionário racista e anti-semita, homossexual recalcado, misógino, mau pai e mau marido, eterno adolescente dedicado ao culto de rostos femininos juvenis." Eis, pois, em poucas linhas, matéria que chega para um século de batalhas académicas sobre Júlio Verne.

Sem ambiguidades, Pierre Picot assume claramente uma admiração profunda: "Nisto tudo, fica esquecido o escritor laborioso que publicava dois volumes por ano, o fantasista juvenil (...) autêntico inovador no imaginário da modernidade. A sua obra é imensa e reserva muitas surpresas. Júlio Verne é um autor para quem a narrativa de exploração é um pretexto para uma meditação muito poética sobre o desconhecimento de um real que as palavras não conseguem domar."

Editor Hetzel, o encontro-chave

Júlio Verne acreditava que "tudo o que um homem é capaz de imaginar, um outro é capaz de o realizar". Puro produto de um século XIX crente na tecnologia e no progresso, Júlio Gabriel Verne nasceu em Nantes a 8 de Fevereiro de 1828. Passou a infância neste porto do Atlântico, onde acostavam navios carregados com especiarias estonteantes e de onde zarpavam naus para terras desconhecidas. Nantes foi também o porto onde confluíam os negreiros do tráfico de escravos do século XIX.

Mas, para Júlio Verne, foi nesta cidade costeira que a sua imaginação se libertou das amarras: "Sonhava subir aos mastros dos navios, viajava agarrado a eles", escreveu em Souvenirs d"infance et de jeunesse (Memórias da infância e da juventude).

Filho de um solicitador, estava destinado a herdar o escritório do pai. Em 1848, foi obedientemente estudar Direito para Paris, mas descobriu depressa que queria ser dramaturgo. Admirador de Victor Hugo, Alexandre Dumas, Walter Scott e Stendhal, tinha 22 anos quando começou a escrever peças de teatro que serão publicadas na revista católica Musée des familles.

Em 1857, casou-se com uma jovem viúva de 26 anos, Honorine, que já tinha duas filhas e com a qual teve o seu único filho, Michel. Arranjou então um emprego na Bolsa de Paris, para fazer viver o lar, mas continuou a escrever nas horas vagas.

Cinco anos depois, deu-se o ponto de viragem na sua vida e na sua obra, com o encontro do editor Pierre-Jules Hetzel. O editor aceitou o seu manuscrito de Voyage en l"air que, uma vez reescrito sob os seus conselhos, se tornou no célebre romance Cinco Semanas em Balão. A série das 62 "viagens extraordinárias" estava lançada e encontra um sucesso imediato.

O talento do escritor será secundado até ao fim pelo génio de marketing de Hetzel - embora alguns universitários afirmem hoje que Hetzel cerceou a complexidade dos seus romances e os temas universais que acompanhavam personagens como o capitão Nemo de Vinte Mil Léguas Submarinas e de Viagem ao Centro da Terra.

Vinho com folhas de coca

O escritor que fez tantas antecipações audaciosas teve uma vida tranquila. Escrevia todos os dias das 5h às 11h, beberricando frequentemente o célebre vinho Mariani - um Bordéus tinto em que tinham macerado folhas de coca. Perfeitamente legal, este néctar inspiratório contava entre os seus fiéis amadores a rainha Vitória, Erik Ibsen, R.L. Stevenson e Edison. Não obstante, era na leitura das revistas científicas, à qual consagrava todas as suas tardes, que Júlio Verne ia procurar a sua fonte de inspiração, como ele próprio o disse e escreveu.

Depois de ter dado ao mundo uma centena de romances e novelas, Júlio Verne morreu tranquilamente, aos 77 anos, na sua casa de Amiens.

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