Carne para tubarão

Mais de 3000 pessoas fizeram fila, durante três horas, à porta de um cinema em Dallas, debaixo de tempestade, debaixo do cartaz de um filme com a enorme boca aberta de um tubarão (era verdadeiro e segundo o rumor tinha sido criado em cativeiro, com um transplante de cérebro de chimpanzé). Quando o espectáculo começou a sala afogou-se em murmúrios de espanto e suspiros de susto.

Foi assim em todas as salas da América e até Fidel Castro, em Cuba, comentou, dizendo que o filme, que tinha como cenário uma vila e a reacção dos interesses turísticos à presença de um tubarão nas suas águas, mostrava "o quão longe a América capitalista estava disposta a ir para proteger um investimento".

Não era apenas um filme, era um acontecimento. E as ondas de choque chegaram a todo o mundo, dando início à era dos "blockbusters": quando os filmes começaram a invadir ecrãs em ataques assassinos feitos para rebentar com as bilheteiras aos fins-de-semana.

Era Junho de 1975, era "Tubarão"/ "Jaws", de Steven Spielberg - o animal, na verdade, era um boneco mecânico e deu dores de cabeça à produção que até começara por lhe chamar, afectuosamente, "Bruce"...

"Não, o nosso filme é diferente. 'Tubarão' era um filme de grande divertimento, um misto de 'thriller' e de filme de horror. O nosso filme é apenas um filme de tubarões". Quem fala, ao telefone de Brooklyn, Nova Iorque, é Chris Kentis, um dos realizadores (o outro é a mulher, Laura Lau) de "Open Water - Em Águas Profundas", um pequeno filme, com uma equipa de quatro (dois realizadores, dois actores) mas vários tubarões de verdade - e uma câmara de vídeo digital -, que foi, a seu modo, um pequeno acontecimento no Verão americano. Entre outras coisas porque não passou despercebida esta coincidência: quase 30 anos depois da data que transformou a indústria americana naquilo que hoje ela ainda é, aparece um filme que, parecendo aproveitar-se do mesmo potencial mitológico - como diz Kentis, "ninguém fará um filme com tubarões e escapará às comparações com 'Tubarão'" -, não pode deixar de ser visto como "statement" de reacção aos tempos que ainda são os de pós- "Jaws".

Vejam só: dois actores à água, algures a 18 milhas das Bahamas - sem equipa técnica, sem caravanas para descansar, sem maquilhadores -, dois realizadores e uma câmara de vídeo digital e nem um só efeito especial. Só tubarões a sério, de uma espécie particularmente agressiva. E a legenda inicial, "baseado numa história verídica", algo que, com o vídeo digital, se tornou um "fetichismo" do recente cinema independente americano: tudo é "real" (em alguns casos o embuste é notório, basta recordar "Blair Witch Project").

Chris Kentis concorda com esta radiografia, mas repõe à sua maneira: de "Tubarão" não recusa nada (como poderia?), interessa-lhe mesmo "a lição de que o que não se vê é mais asssustador e sugestivo". Isso aprendeu com o filme de Spielberg, mas também com a sua experiência de mergulhador (11 anos): "Como mergulhadores nunca podemos ver totalmente o que se passa à nossa volta, não podemos controlar, de forma alguma, o nosso destino."

Agora, é verdade que está farto de efeitos especiais, parecem-lhe intromissões "de cartoon, de BD" nos filmes, e acha mesmo que os espectadores hoje já não sentem nada, nem medo.

"A história do filme é baseada numa história verídica que aconteceu na Austrália, quando um casal foi deixado, por engano, no mar. Desde o princípio que a ideia de filmarmos com tubarões de verdade fazia parte do projecto. Não tínhamos muito dinheiro [130 mil dólares] mas mesmo que tivéssemos faríamos assim. Como uma resposta ao facto de haver neste momento uma utilização gratuita dos efeitos especiais. Em que já não acredito."

Mas não há também neste momento - e provavelmente por reacção aos mundos inventados por computador - uma utilização das câmaras de vídeo digital como caução de realidade que às vezes resulta calculista? "Sim, provavelmente, mas não nos quisemos aproveitar dessa moda do realismo. O vídeo digital tem um 'look' específico, um imediatismo, e é a forma ideal para uma história como esta. E não podia haver vedetas, se não o efeito de realismo desapareceria. Quisemos que o espectador acreditasse no dilema das personagens, que experimentasse o filme do ponto de vista das personagens. Que se perguntasse: 'o que faria eu naquela situação?'"

casal à água. Sim, o que faria se tivesse sido abandonado, por engano, no meio do mar, e se descobrisse rodeado por barbatanas de tubarões?

É o que acontece ao casal "yuppie" de "Open Water" (interpretados por Blanchard Ryan e Daniel Travis), que parte para um dia de lazer, numa daquelas excursões de mergulho que servem para experimentar ao vivo as maravilhas da natureza tais como elas aparecem na segurança do ecrã televisivo, e acabam esquecidos no mar.

O barco parte, ele e ela não desesperam logo, pelo menos enquanto o humor e as referências televisivas colocam o medo ao largo. Mas depois o frio começa a gelar as relações, a entorpecer os corpos, e a verdade impõe-se com a chegada de "the real thing" - o tubarão, um e mais um e outro ainda, curiosos com os corpos na água. Assim se desenvolve a crónica de uma erosão conjugal - uma erosão humana.

"Não é só este casal, que pensa que controla tudo, que está em causa, somos todos nós, seres humanos", nota Kentis. "Há uma certa arrogância em nós, tomamos tudo como certo, até a natureza, e é inevitável que, assim, nos deixemos de tocar uns aos outros. Quisemos usar o oceano quase como um estúdio com luzes onde se dencadeasse este ajuste de contas: o filme começa muito azul-marinho, depois aparecem os cinzentos e depois uns vermelhos, e tudo começa a ficar surreal."

Deve dizer-se, em abono da verdade, que o expediente narrativo - o esquecimento do casal - é forçado, e isso se torna perturbador porque ao longo do filme o realizador deixa a espaços o mar para regressar a terra, e aos que se esqueceram do homem e da mulher no mar, e de cada vez que faz isso vinca o artificialismo. Mas enquanto se deixa ficar em águas profundas (o que faz durante 60 dos 79 minutos do filme), é uma interessante, minimalista, crónica de um desaparecimento, não apenas de uma conjugalidade - algo que é vivido com desesperada cumplicidade pelos dois actores - mas de uma coisa mais vasta, um eclipse civilizacional. "Open Water" filma esse apocalipse como uma série B o pode fazer, e só é pena que não seja mais visceral e primitivo nas tempestades e insinuações de fantástico exótico - assim regressaria à própria pré-história de "Tubarão", para repor aquilo que já alimentara o realizador Spielberg, e assim o círculo fechava-se. É claro que ajuda a esta pré-disposição para o "exploitation movie" e para a série B (concedemos: será um "guitly pleasure" que o filme não cultiva de forma militante) saber que Blanchard Ryan e Daniel Travis foram mesmo carne atirada aos tubarões.

Chris Kentis afasta qualquer insinuação de "proeza" e de sadismo. "Era a única maneira de o fazer", assegura. Quando se fazia o "casting", para além de os actores terem sido avisados que não haveria "trailers", maquilhadoras e outros confortos, e que tinham de filmar cenas de nu (mais uma achega para o "exploitation"...), ficou claro que teriam de mergulhar no mar com tubarões. Sim, filmariam perto da costa, para tudo ser mais rápido em caso de acidente. Vestiriam uma malha de metal debaixo do fato de mergulhador; mas isso não afasta o terror - e o que fariam às mãos e à cara?

Chris explica como atirou os actores à água e mais duas ou três coisas que não sabíamos sobre tubarões:

"Estivemos 12 horas a filmar as cenas com tubarões, o equivalente a 2 dias. Estes tubarões pertencem a uma espécie perigosa, mas tínhamos connosco um especialista de altíssima qualidade. É alguém que formou, na zona onde filmámos, populações de tubarões e é alguém que leva habitualmente pessoas lá abaixo. Portanto, os tubarões estão habituados a mergulhadores. E há uma coisa que não se sabe - aí, 'Tubarão' mostrava uma imagem distorcida: os tubarões raramente atacam as pessoas, e quando o fazem é por engano. São predadores, mas não vão directos a um corpo como assassinos calculistas. Ficam curiosos, andam às voltas, podem passar-se oito ou nove horas antes de atacarem. Quando o fazem, fazem-no numa altura em que o corpo, por efeitos de desidratação, por exemplo, já se tornou 'comida'. Há uma história verídica de um grupo de náufragos avistados de helicópetro no mar: estavam rodeados de dezenas de tubarões há horas."

Blanchard Ryan e Daniel Travis sobreviveram à curiosidade dos indivíduos com barbatanas, mas não escaparam a mordidelas de piranhas e à sensação de choque eléctrico provocada pelo contacto com medusas. Tinham a malha de metal a proteger o corpo, mas tinham de estar quietos, não podiam chapinhar, não podiam mexer as mãos - perturba os tubarões. Mas sobreviveram.

Quanto às suas personagens, isso é aquilo que o realizador pede encarecidamente que não seja divulgado.

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