Tráfico de bebés não é totalmente inédito em Portugal

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Ainda há cinco anos, o país exportava bebés para os Estados Unidos desde a Base das Lages, nos Açores DR

A investigação da Polícia Judiciária de Coimbra, ontem revelada pelo PÚBLICO, traz uma componente sofisticada a uma prática que nunca terá desaparecido de Portugal: a venda de recém-nascidos para adopção. Ainda há cinco anos, o país exportava bebés para os Estados Unidos desde a Base das Lages, nos Açores.

Não é algo de que se goste de falar. Em diversas maternidades, porém, de quando em quando são abortadas tentativas de mulheres que se disponibilizam a entregar os filhos - a troco de roupa e comida, de dinheiro ou da simples garantia de uma vida melhor para a criança.

Mariana Pacheco é assistente social no Hospital de São Marcos, em Braga, há apenas um ano, mas já se confrontou com uma tentativa de negócio desta natureza. Aconteceu já em 2004, com uma portuguesa com vários filhos.

A "mãe de sete filhos", como Mariana Pacheco lhe chama, ganha a vida na prostituição. Deu entrada no serviço de obstetrícia num determinado dia à tarde e h oras depois exigiu alta. Pedir alta é um direito que lhe assiste, mas houve uma enfermeira que ficou desconfiada. Por regra, as parturientes ficam internadas três dias. E esta não só recusara, de forma contundente, permanecer uma única noite, como recebera a visita de um casal "muito bem vestido".

Alertada na manhã seguinte, Mariana Pacheco contactou o Tribunal de Família e Menores de Braga e a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Risco. "A comissão já sabia que ela tinha dito que queria dar o bebé para adopção". Não o dera. Vendera-o. "O casal foi apanhado no registo civil", o bebé foi-lhe retirado.

Há um serviço social em cada maternidade atento a sinais de rejeição de bebés. E o despiste mostra que a exclusão social, mais até no sentido de isolamento do que de pobreza, é a principal causa de abandono. As mães toxicodependentes e as prostitutas vivem, por vezes, num "desespero tão grande" que se sentem impossibilitadas de dar afecto, explica Belmiro Patrício, director do Serviço de Obstetrícia do Hospital de São João, no Porto. "Já não há capacidade crítica, apenas busca de soluções". E, nesse contexto de desvínculo total, "vale tudo".

Há uns anos, havia pressão dentro dos próprios hospitais: pessoas que ficavam por ali, a cirandar, empenhadas em identificar grávidas "de risco", nomeadamente raparigas muito novas e toxicodependentes. Desapareceram - tal como desapareceram os cangalheiros que dantes frequentavam os serviços de urgências à procura de clientes. Mas nada garante que não se mantenham nas imediações das maternidades.

"Embora hoje seja mais fácil adoptar, há pessoas que acham que é mais seguro e menos visível, em termos sociais, comprar", explica Octávio Cunha, director do Serviço de Neonatologia do Hospital de Santo António, no Porto, que nos anos 80 garantia serem comuns as entregas ilegais de crianças à nascença em alguns hospitais.

Na Maternidade Bissaya Barreto, em Coimbra, por exemplo, os rumores percorrem os corredores com alguma frequência. Já este ano, foi accionado o processo de uma parturiente. A mulher recebia a visita de um casal que se auto-intitulava avô da criança. O modo como se relacionavam não era o que vulgarmente se espera de uma família. Os serviços começaram a estranhar e tomaram medidas.

A investigação da PJ revela que pelo menos duas mulheres de nacionalidade búlgara entraram em Portugal no fim da gestação para darem à luz a bebés que de imediato venderam a casais portugueses - um negócio por ora "pontual", mas suportado por uma rede de auxílio à imigração ilegal, o que pode significar uma nova tendência do crime organizado.

Já houve um tempo em que o país entrava no rol de exportadores. Ainda na década de 90, a venda de bebés estava relativamente vulgarizada na Ilha Terceira, nos Açores. O escândalo estourou em 1999, a partir de uma reportagem emitida pela RTP regional.

Várias mulheres admitiam terem, nos trinta anos precedentes, vendido ou cedido recém-nascidos a americanos da Base das Lajes, a emigrantes ou a casais da terra com posses. Todas guardavam uma fotografia da criança que um dia fora sua. E todas revelavam ter uma certeza - com aquele acto os seus filhos tinham ganho uma vida melhor do que a que lhes fora predestinada à nascença.

O negócio diminuíra drasticamente, garantiam as diversas fontes então contactadas pelo PÚBLICO. Contudo, a expressão popular resultante daquela prática permanecia: "Se não te portas bem, vendo-te a um americano".

E uma coisa parece certa: a situação tem permanecido à margem das autoridades. Pela própria natureza do negócio - quem compra não se vai queixar, quem vende também tende a não o fazer. E pelo vazio legal: o comércio de bebés para adopção ainda não está previsto no Código Penal.

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