Tom Cruise dança com Samurais

Edward Zwick confessou que gosta do século XIX. Não seria preciso dizê-lo, bastaria ver "Glory" (1989), em que Matthew Broderick comandava a primeira companhia formada por negros durante a Guerra Civil Americana, bastaria ver "Legends of the Fall" (1994) e agora "O Último Samurai", em que Tom Cruise (capitão Nathan Algreen) é um dos despojos do expansionismo americano (vive assombrado pelo massacre de uma tribo Sioux), que, em 1876, é contratado para treinar forças japonesas - para as iniciar às artes da artilharia e de caminho derrotar os samurais que se revoltaram, desafiando com as suas espadas quem antes serviam (o Imperador), contra a abertura do Japão tradicional ao Ocidente.

É por isto que Zwick gosta do século XIX: permite-lhe definir silhuetas trágicas, estilhaçadas pelas mudanças, tecnológicas, sociológicas - morais - de um tempo; uma era que acaba, outra que começa. No caso de "O Último Samurai", há duas figuras de tragédia: Algreen, que vai para o País do Sol Nascente para ir mais fundo na expiação dos pecados, e Katsumoto, o chefe samurai (Ken Watanabe), que luta para fazer parar o tempo. É claro que, do encontro destas figuras (Algreen vai ser capturado pelos samurais), resultará a redenção de Cruise, que é o que interessa a Zwick, porque lhe interessa a América. No contacto com o Outro, Algreen redime-se como ser moral: escolhe ficar no Japão, mas essa dissidência - existencial, política - é a aprendizagem do individualista da última fronteira (mito americano), como num "western", como num "western moral".

Temos herói. Sem a fragilidade do Matthew Broderick, o "soldadinho de chumbo" de "Glory". Cruise, a "big star", é diferente de Broderick. Na maior parte das suas escolhas de carreira (pensa-se nas que ele produz), apresenta-se de forma compacta, como um "pronto-a-filmar". Insuflando os orçamentos dos projectos que aceita como veículos, contaminando os filmes com a obsessão de eficácia, que sufoca tudo à volta, sem desvios. Falta lirismo a "O Último Samurai", porque não se confunde lirismo com cenários bucólicos para emoldurar. Sobram generalidades politicamente correctas nos diálogos, sobre lealdade e honra, ou um "love affair" que se faz pudico para estar de acordo com a reserva japonesa. Onde está a selvajaria e o sangue, apesar das batalhas coreografadas mostrarem que alguém andou a ver "Os Sete Samurais" (não chega, Zwick não é Akira Kurosawa)?

E Cruise ganha o Óscar? Admira-se o inaprisionável intérprete de "Magnólia" (ou de "A Cor do Dinheiro", "Encontro de Irmãos", "Nascido a 4 de Julho"), mas este é o Cruise preso à gestão do percurso anti-herói-que-se-transforma-em-herói. Aconselha-se vivamente: após o filme, percorra-se o retrato que dele faz (texto de Jeff Gordinier) o número de Dezembro da revista Details, "tirado" à mesa de um restaurante japonês de Beverly Hills, quando o actor ignorou a sumptuosa comida (não a Diet Coke) para mostrar os livros (sobre samurais) que anda a ler e falar à imprensa desta sua nova obsessão - é ou não magnífico instantâneo da eficácia americana como puritanismo em acção?

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