Tativille Odisseia no Espaço

Aquilo que era um rumor, tem a sua prova em imagens, num dos extras que acompanha a edição francesa, em DVD, de "Playtime", o filme de Jacques Tati que é reposto hoje em versão restaurada e cópia nova: um cenário, da altura de um edifício de quatro andares, a ser derrubado, e um vulto, num gesto rápido - mas intencionado -, a fugir da zona de impacto não sem antes atirar um volume, um conjunto de páginas, e como se quisesse que tudo isso ficasse enterrado no esquecimento.

E assim Tativille - nome de cidade - se desmoronava, e assim Tati, num gesto - sepultar o argumento de um filme - dramático, ressentido, e também auto-irónico, assumia para todos verem a derrota de "Playtime". Que comsumira anos da sua vida, que pouca gente tinha querido ver, que o obrigara a vender a própria casa e a abdicar dos direiros dos filmes anteriores (para fazer face às dívidas), que o tinha levado a refugiar-se, deprimido, num apartamento de Paris, e que, com poucas excepções, motivara reacções de suspeita, insinuações de desajustamento e megalomania.

"Para que se visse a arquitectura moderna" - disse Tati numa entrevista, e a "boutade" tornava ainda mais visível o ressentimento - precisou de fazer o filme desta forma, em ecrã grande, reconstruindo uma cidade, a que chamou Tativille (e que ele esperava que, depois de ser cenário, se transformasse em cidade de cinema, com escola, museu, salas de projecção, enfim, instrumento de trabalho para jovens cineastas). Não era possível arrumar tudo na gaveta da megalomania - "para que se visse a arquitectura moderna era preciso dinheiro".

Não havia propriamente história no filme, mas rumor de sons, personagens e percursos a propósito da chegada a Paris - e ao contacto com os parisienses, entre os quais um tal Sr. Hulot - de um grupo de turistas americanos, numa daquelas viagens organizadas em que se vê tudo e não se conhece nada, uma deambulação pelos equívocos de um labirinto de vidro e aço onde tudo se reconhece e, por isso, não é imediatamente identificável: começamos num aeroporto que podia ser também hospital ou outra coisa qualquer, e depois é como se no mesmo espaço se materializassem escritórios e casas de habitação, como se em cada lugar se encontrasse o mesmo corpo, o mesmo edifício, que também está em Roma, Munique ou Londres, uma misteriosa aparição - o Edifício, como o monólito de "2001-Odisseia no Espaço".

É de uma odisseia, no espaço, que se trata.

A proposta estava explícita no "trailer" do filme: "... vous êtes dans 'Playtime'", "estamos dentro", convite à vagabundagem do olhar pelos vários pontos e sons do ecrã (os vários ecrãs que existem neste ecrã), à procura do que podemos sempre (re)descobrir. "Cherchez le gag", também, porque o "gag" desenrola-se em surdina... não é construção "fechada" ou imediatamente identificada. Está lá, como os sons, que dão vida a cadeiras e almofadas, como a parada (coreografia moderna) de chapéus, "personagens" (manequins) e guarda-roupa que sinalizam, como um desenho "naif", um estatuto social - os chapéus eram a obsessão, de infância, de Jacques Tatischeff (nome verdadeiro, ascendência russa) que, segundo os testemunhos da rodagem de "Playtime", negou indicações de psicologia aos "actores" tanto quanto se esmerou em desenrolar um catálogo de gestualidade (ele começou como mimo, no music-hall), sobretudo com as mulheres, querendo que elas fizessem versões femininas do seu Hulot (que sempre foi a discrição absoluta, sem centro de gravidade, numa convivência perfeita entre excentricidade e diluição anónima, mas que neste filme praticamente desaparece, estilhaçado nas outras figuras).

Sobre o espaço como uma espécie de tira-teimas social, Tati falou assim, numa entrevista: "Em 'Playtime', em todo o início do filme, dirijo as pessoas para que elas sigam as indicações dos arquitectos. As pessoas sentem-se prisioneiras dos cenários. Se o sr. Hulort entrar numa pequena loja e deixar cair o guarda-chuva, a empregada da loja vai dizer-lhe: 'Sr. desculpe, deixou cair o guarda-chuva'. Não tem importância, mas por causa da grandiosidade do cenário, se deixar cair o guarda-chuva no hall de entrada de Orly, esse gesto ganha outra dimensão. Porque foi tudo decidido, tudo foi projectado pelos arquitectos para não deixar cair o guarda-chuva. E, por causa do som da queda do guarda-chuva, você cometeu um acto perigoso (....) Na arquitectura moderna tentaram que as linhas fossem muito direitas, que toda a gente se levasse muito a sério. Toda a gente parece muito instruída só porque anda com um guardanapo".

Voltando às linhas direitas (que para o fim do filme começam a arredondar-se, quando surgem pontos de cor, quando o cenário se desagrega e os manequins perdem a pose): "Playtime" esteve para ser filmado em décor natural, "mas não havia suficiente arquitectura moderna" - o projecto de La Défense apenas começava, mais uns anos e Tati podia ter-se, de facto, aí instalado.... Era possível filmar cenas no aeroporto de Orly, mas não se podia fazer parar um aeroporto. E assim foi construída Tativille, perto de Vincennes, arredores de Paris. Pensada por Tati, com direcção artística do arquitecto Eugène Roman.

Era uma cidade em 1500 metros quadrados, edifícios de aço, ferro, vidro, ruas, sinais de trânsito, escritórios, aeroporto, escadas rolantes. Em tons uniformes de cinzento e azul, onde aparecem, como miragens, imagens da velha Paris. Voltando às palavras de Tati, numa entrevista a Truffaut e Bazin: "A uniformidade parece-me desagradável. Hoje, tenho sempre a impressão de estar sentado numa cadeira. Quando se está numa cervejaria dos Champs Elysées tem-se a impressão que vão anunciar que o voo 412 vai aterrar...nunca se sabe quando se está numa mercearia ou numa farmácia. Quando eu era miúdo ia à charcutaria com a minha avó, havia serradura no chão e a loja cheirava a pimenta e a carvalho".

Para que Jacques Tati pudesse filmar dos ângulos que mais lhe conviessem, os edifícios de Tativille foram construídos sobre rodas e em carris para poderem ser deslocados. Quanto ao aço... fotografaram-se revestimentos de Orly, ampliaram-se as fotografias, como papel de parede, e assim se cobriu Tativille. Repartidos por três anos - entre 1964 e 1967 - foram cerca de vinte meses de rodagem (mil pessoas a trabalhar; a custos de hoje: cerca de 15 milhões de euros).

Mesmo antes da rodagem já se dizia que era uma loucura. As filmagens decorreram num ambiente de tensão (conta-se: Tati sempre de fato e gravata porque tinha de correr da rodagem para uma qualquer reunião com banqueiros por causa do dinheiro), era uma mundança de escala relativamente aos filmes anteriores e o realizador queria, ainda assim, manter o controle sobre tudo como num universo artesanal.

Tativille desmoronou-se, como o sonho de Tati de fazer um filme apenas com fluxos, movimentos de pessoas, radicalizando ainda mais "Playtime". Mas a odisseia, uma (re)educação do olhar, está agora nas salas. Aventuremo-nos pela miragem. "Vous êtes dans 'Playtime'", a partir daqui.

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