O paraíso de Dante

Se observarem a Joe Dante que os seus "storyboards" parecem desenhos animados - as caras das personagens com círculos no lugar dos olhos - ele responderá que sim, mas acrescentará que os homens parecem bonecos desenhados assim, como traços que ficaram de uma impressão, porque os "storyboards" são instrumento de trabalho pessoal. Além disso ele não sabe desenhar de outra maneira (e cresceu a ver filmes de animação - aliás, abandonava a sala de cinema antes de começar o filme e logo que terminava o complemento, os "cartoons").

Dante acrescentará ainda outra coisa: "Todos os filmes, para mim, são desenhos animados".

Isto deve precaver-nos: não vale a pena pensar em "Looney Tunes: de novo em acção" como um filme em que actores de carne-e-osso estão juntos, numa coexistência burlesca e mais ou menos guerrilheira, de bonecos desenhados, animados e a cor - como em "Roger Rabbit", de Robert Zemeckis, onde havia dois mundos que se encontravam e que muitas vezes se chocavam.

Não, aqui há apenas um mundo, é a mesma natureza, apenas com uma diferença de traço. São todos (desenhos) animados, quer as figuras de carne-e-osso quer aquelas que têm uma textura, digamos, mais imponderável. É esta a condição de quem habita o paraíso infernal de Joe Dante.

Antes de mais, os habitantes: dois actores do estúdio Warner Bros., Bugs Bunny e Daffy Duck (o coelho e o pato), são uma dupla em guerra em Hollywood. O segundo está cansado de ser isso mesmo, segundo, e ameaça abandonar o estúdio onde reina nos Looney Tunes, a série de filmezinhos e personagens que a Warner criou nos anos 30. Ameaça, à espera que isso lhe renda, mas o tiro sai-lhe pela culatra, e o pato é posto fora e o portão fechado. Um aspirante a duplo, DJ Drake (Brendan Fraser), fica com a missão de levar Daffy Duck ao infortúnio (já agora, Daffy Duck é interpretado por Daffy Duck; e já agora: DJ Drake, o duplo, não esconde o azedume por servir de duplo nos filmes de uma estrela caprichosa, chamada Brendan Fraser, com quem é incrivelmente parecido).

Outra dupla, involuntária, se forma então - DJ e Daffy - quando o primeiro descobre que o pai, Damian Drake (Timothy Dalton), estrela de filmes de espiões (e espião na vida real), é raptado por um vicioso, infantilizado e algo "camp" mau da fita (Steve Martin), presidente da Acme Corporation que quer transformar o mundo num planeta de macacos. E enquanto DJ e Daffy atravessam a América à procura do pai - hão-de chegar também às florestas tropicais - juntam-se-lhes "on the road" Bugs Bunny (interpretado por Bugs Bunny) e a vice-presidente do departamento de comédia da Warner, Kate (Jenna Elfman), porque o estúdio entretanto concluiu que o coelho precisa do seu habitual parceiro para que o filme que os dois estão a rodar não se espatife nas bilheteiras - qual filme, perguntarão neste momento, um filme-dentro-do-filme ou este mesmo "Looney Tunes: Back in Action"?

orgia.

Também aqui não é possível distinguir. Há vários filmes, a intromissão de muitos filmes. Há um momento em que Bugs Bunny está na banheira e quando alguém entra a criatura com o dente impertinente enche-se de volúpia e toma-se por Janet Leigh, assassinada em "Psico" - estende a mão, rasga a cortina, cai, abre o olho... e a seguir vem, plano a plano, a cena do chuveiro do filme de Hitchcock (desenhada... animada... tanto faz).

Anda por lá também uma qualquer aventura de Indiana Jones - o "pai" em "Looney Tunes..." não é, aliás, um ex-James Bond, como o pai (Sean Connery) de "Indiana Jones e a Última Cruzada"?

Muitos e outros filmes - invasão de criaturas, cenários e adereços da ficção apocalíptica, série B ou Z, de que Dante se alimentou na adolescência quando a América pensava na Bomba (ele só parou de sair da sala de cinema no final dos "cartoons" quando, em 1953, viu "It came from Outer Space", de Jack Arnold, e compreendeu que "havia ali alguma coisa", uma sintonia com o perfume do apocalipse).

E há também - como se vê, é um desvario de fragmentos - aquela parte em que as personagens correm pelos corredores do Louvre, em Paris (recriado em estúdio), e fogem para dentro dos quadros e o mundo toma então as formas do pontilhismo, estrutura-se em mil fragmentos (uma tela de Seurat), ou é matéria monstruosa e informe (um quatro de Dali).

Joe Dante, nos anos 60, fez uma "coisa" chamada "The Movie Orgy", montagem de excertos de filmes dos anos 50, séries de TV e velhos spots de publicidade, que ambicionava ser um filme único, como se tudo tivesse sido criado ao mesmo tempo e no mesmo espaço (ajudava o facto de nos filmes de série B serem os mesmos actores a desempenhar o mesmo tipo de papéis, até com o mesmo guarda-roupa; era fácil parecer o mesmo herói a combater insectos gigantes, monstros voadores... tudo num único filme).

A colagem não era operação de pura nostalgia, disse Dante - também o era, se se pensar que essa orgia foi sendo actualizada com novos excertos durante dez anos e é natural que fossem accionados os trabalhos de uma memória geracional; mas era, sobretudo, disse, o desejo de criar uma outra realidade, juntar materiais diversos para chegar a um resultado que fosse mais do que uma soma, uma "twilight zone" de emoções acesas, prazer e medo, riso e violência, drama e sátira, comédia e brutalidade (pormenor biográfico: Dante não quis fazer "Batman" porque sempre preferiu o Joker, aquele que mata e ri).

Desse "épico" inicial, ficaram vestígios em toda a obra de Dante, e também em "Looney Tunes...". É por isso que não há aqui dois mundos - um realista, outro de fantasia -, antes uma outra dimensão, que é totalitária. Porque é que Joe Dante gosta tanto de "cartoons"? Porque é a realidade onde podem desaguar sem freio as pulsões, é câmara de eco para personagens e espectadores - as personagens, pareçam bonecos, como Daffy Duck, pareçam de carne-e-osso, como DJ Drake, são reféns das suas fraquezas e júbilo e têm tal consciência disso, como se estivessem simultaneamente dentro do filme e a dizerem "isto é um filme!", que acabam por ser os mestres de um jogo de prazer e perversão a que o espectador está (voluntariamente) acorrentado na cadeira. Uma hipótese: e se cada uma dessas personagens fosse uma espécie de duplo de Dante, funcionando para o espectador como o realizador funciona para o grupo dos outros "movie brats", para Steven Spielberg em particular? É que depois de ter achado graça ao gozo ("Piranha") que Dante fez de "Tubarão", Spielberg, fascinado, contratou-o para "Gremlins" e "Gremlins 2", como se depositasse em Joe a tarefa de se abrir aquilo que ele tem (ou tinha) mais pudor em fazer com a sua própria obra - a paródia, a perversidade, o lado negro. Somos assim também nós, espectadores, na cadeira...

Depois o filme acaba, a catarse, enfim, dá descanso. DJ Drake cumprimenta Timothy Dalton, que acabou de fazer de seu pai; Bugs Bunny entra na "limousine" que leva a estrela, que acabou de filmar, a casa (mas de que filme sai o coelho?); DJ Drake, o duplo, encontra o foco da sua frustração, o caprichoso Brendan Fraser, e por aí adiante, de regresso à realidade... mas o jogo de espelhos acentua-se, DJ Drake é tão parecido com Fraser... e tudo continua tão parecido com... e o paraíso infernal, se quisermos, não acaba.

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