O escritor que encontrou fantasmas no canal

Não é o marinheiro que perdeu as graças no mar, é o escritor que encontrou os seus fantasmas no canal - ou noutra superfície, basta que sirva para reflectir. "Pensa em mim, quando olhares para ti próprio" é a frase gravada num espelho, qual praga, e assim Joe não se vai nunca livrar de cadáveres. É isso que define a sua existência.

Joe é o escritor, mas só mais tarde sabemos que é escritor (e nem isso é; a isso aspira). Quando o conhecemos, está integrado num estranho triângulo que voga numa barcaça entre Glasgow e Edimburgo. Joe (Ewan McGregor), Ella (Tilda Swinton) e o marido dela, Leslie (Peter Mullan), são despojos da paisagem industrial escocesa nos anos 40; cobertos de carvão, navegam como espectros pelos canais. A barcaça é dela e Joe é uma espécie de voluntário náufrago que chegou às margens desta família (ainda há uma criança nesta paisagem).

Aparece um cadáver, de uma mulher, a boiar. Um suspeito é encontrado, julgado, condenado. Mas foi Joe que teve uma relação, e um encontro decisivo, com ela - que se chamou Cathie. Mas, enquanto irrompem "flashes" da sua ligação com a morta, já Joe liberta a pulsão sexual envolvendo-se com Ella.

E é assim que, mal tendo tempo de sermos integrados naquilo que parece ser uma reconstituição - correcta, não fugindo muito ao estilo BBC - da vida proletária escocesa, somos envolvidos por cenas de sexo desesperado, lívido, como um conto erótico com desespero social em fundo - e "murder investigation" ainda mais ao fundo.

Mas nem aí (que também é terreno batido) o filme se estabiliza, porque "Young Adam" se escapa para territórios mais movediços, entre duas histórias: uma com Ella, a outra com Cathie. A primeira é suposta ser do presente, a segunda é suposta ser "flashback" ao passado - mas as duas convivem paralelamente, como se habitassem o mesmo tempo, que é, afinal, o da realidade da mente de Joe.

E também não se pode dizer que uma mulher está viva e a outra morta, porque, tal como o canal e as brumas não são mais irreais do que a terra firme (são até o espaço onde uma realidade se inventa), também Ella e Cathie são fantasmas - da impotência, do egoísmo e do falhanço de Joe, que também atirou ao canal a máquina de escrever. Este tempo particular foi a forma escolhida por David MacKenzie para adaptar o livro, escrito em 1954, de um escritor de culto, Alexander Trocchi (1925-1984).

"Não tenho uma relação assim tão obsessiva com a obra de Trocchi; o que me interessou foi o livro, que li há nove anos", conta MacKenzie, numa conversa telefónica com o Y. "O livro é narrado na primeira pessoa, com 'flashbacks' que constroem uma espécie de 'puzzle' na mente de Joe. Desde o início que quis quebrar esta construção e até pensámos pôr as cenas do passado a acontecer antes da descoberta do cadáver; depois optámos por esta forma a que eu chamaria 'integrada', no sentido em que o passado é integrado no presente." E assim faz deste tempo um presente inescapável. "E assim também a personagem de Joe pode ter um alcance mais universal, sem ser apenas aquilo que é no livro, um alter-ego de Trocchi".

Trocchi é uma espécie de ícone "beat" da Escócia, embora a generalidade dos escoceses não o tenha descoberto assim há tanto tempo - é o que conta MacKenzie, 37 anos, querendo com isto dizer que o nome é conhecido, a figura desperta curiosidade, mas isso não quer dizer que os livros sejam, de facto, lidos. A propósito de Trocchi, William Burroughs falou numa obra sobre "o espírito, a carne, a morte e a visão que emana da carne" - não é isso o que liga Joe às mulheres?

A geração "beat" incensou-o, Leonard Cohen foi seu amigo. Heroinómano e boémio, Trocchi foi editor, nos anos 50, em Paris, de uma revista literária, "Merlin", que publicava Sartre, Beckett e Genet. Em Nova Iorque, onde viveu, escreveu pornografia para sustentar o vício - obrigou também a mulher a prostituir-se. Joe, o amoral e neurótico narcisista de "Young Adam", será um auto-retrato. No filme, diz o realizador, a personagem é uma "progressão pelos terrenos da inocência e da culpa, onde acaba uma e a outra começa, ou seja, uma divisão que é fluida".

Ewan McGregor é Joe, mas a panache irrequieta que é habitual no actor, uma espécie de irreverência infantil, não é aqui reconhecível, foi ocupada por sombras. Também se deve dizer que, por uma vez, o corpo de Tilda Swinton parece ser constituído por carne. Se se pensar que eles, e ainda Peter Mullan, são actores de territórios reconhecidos e estabilizados numa imagem - mas muito diferentes entre si -, MacKenzie consegue um assinalável espírito de corpo (por assim dizer, despido de imagens de marca).

"Todos eles perceberam o que fazer com as personagens. Vindo de tradições muito diferentes, a minha função foi dar-lhes espaço e tempo para que eles fizessem o seu trabalho - desde logo porque têm métodos de trabalho diferentes e a rodagem foi difícil, porque não havia muito dinheiro", explica o realizador.

Uma barcaça desce (ou sobe) o canal dos pesadelos de um homem - MacKenzie sublinhou o motivo da viagem desta barcaça-fantasma, e é essa a impressão mais forte que fica, juntamente com a inocência culpada de McGregor. "L'Atalante" em versão escocesa? Se há filme que ecoe em "Young Adam" é o "Spider", de Cronenberg. MacKenzie gosta do filme do canadiano, mas não lhe agrada a comparação a que leva esta sua segunda longa-metragem: "Nem vejo bem porquê!" Não gosta, certamente, porque neste momento está a trabalhar na montagem de "Asylum", terceira longa, com Natascha Richardson e Ian McKellen, que adapta um romance de Patrick McGrath... o autor de "Spider".

"É uma coincidência, só posso dizer isso, porque não quero ser visto como um especialista nas décadas de 40/50 britânicas e na doença mental", ironiza. "Se há um traço comum entre 'Young Adam' e "Asylum', é o facto de serem filmes sobre personagens nas margens da sociedade."

Tudo o mais que se quiser saber sobre MacKenzie poderá ser descoberto ao longo da próxima semana. A longa-metragem com que se estreou, "The Last Great Wilderness", e as suas curtas vão ser dadas a conhecer no programa que comemora os 28 anos do cinema Quarteto em Lisboa (ver texto nas páginas seguintes).

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