Gente com coração

Um coração de gente aparece a boiar na sanita de um quarto de hotel. Este é o cartão de visita de Londres, século XXI. Num quarto de hotel, que é o caminho mais próximo para chegar à morgue - e mais próximo ainda de chegar ao inferno. O que é emocionante nesta aventura pelas corredores do quase-horror, é que em "Estranhos de Passagem" há gente que recupera o seu coração.

É Londres, cidade em que os imigrantes ilegais ficam condenados a passar invisíveis na madrugada. É essa a condição do nigeriano Okwe (Chiwetel Ejiofor), médico de formação, mas empregado de hotel (entre outras coisas) para desenrascar a vida. E é essa também a condição de Senay/Audrey Tautou, que é turca (e virgem) e empregada no mesmo hotel.

Completa o trio Sneaky, ou melhor, Juan (Sergi Lopez), que também é estrangeiro, mas cabe-lhe agora explorar os da sua condição - para desenrascar a sua vida. O pacto de Sneaky é fatal, irrecusável: em troca de um rim para o comércio de órgãos, ele proporciona um passaporte. Às vezes as coisas correm mal, e lá tem que se mandar um coração, ou outro órgão, sanita abaixo.

Esta é a Londres de Stephen Frears, cineasta que registou a cidade que foi de Thatcher nos anos 80 (em "A Minha Bela Lavandaria", por exemplo). É agora uma Londres de interiores, caves, fábricas que desaparecem num dia, corredores, espaços em trânsito. De personagens e espaços de uma alucinação. Okwe masca folhas com propriedades alucinogénicas para poder manter-se acordado e poder acorrer a todos os expedientes que arranjou para a sua sobrevivência; assim também tudo em "Estranhos de Passagem" tem aquela propriedade do fantástico que não se materializa, que é imagem difusa, não totalmente aprisionável - como as impressões que passam por realidade durante estados prolongados de vigília -, onde só o medo é palpável.

Foi assim que Frears olhou para Londres, foi isto, então, o que encontrou - e não reconheceu? - depois da experiência em Hollywood: um mundo paralelo, uma ameaça de vertigem, uma atracção pela queda (não é por acaso: do hotel passa-se para uma morgue como para a sala ao lado; não é por acaso: há quem nunca saia destes espaços, porque às vezes à força de tanto viver um pesadelo ele acaba por constituir-se como miragem de protecção, ou o vício do inferno, como as personagens dos pesadelos de Dostoievski).

Eis, então, Stephen Frears na sua forma singular de falar dos espaços e das pessoas - da "realidade". E singular por isto: vem da TV e da chamada tradição "realista" britânica, a que pertencem nomes como Kean Loach ou (o também pouco ortodoxo) Mike Leigh, mas não costuma haver sinais de "gordura" temática ou de "programa" de debate social nos seus filmes. "Estranhos de Passagem" é "sobre" imigrantes ilegais, as novas populações que se formam na Europa e que esbracejam na escuridão? Sim. Mas o que se vê? Um filme de horror e um filme de amor (apesar do erro de "casting" de Audrey Tautou, as emoções sem palavras entre Senay e Okwe é das coisas que mais alto falam no filme).

O "programa" ficou em fundo, na escuridão. O que vem ao de cima (como o coração, na água da sanita) é uma capacidade de transformar vultos em pessoas e ligar pessoas e lugares. E um sentido de humor que foi arrancado à tragédia - desassombrada é também a forma como Frears olha para o seu "métier" de "adaptador de argumentos".

O que vem ao de cima, finalmente, é a capacidade vital das personagens. E assim, uma imagem de morte - o coração, a boiar - torna-se metáfora do movimento de vida que vai animar "Estranhos de Passagem". Da vertigem de queda à ascensão. Este é um filme em que um imigrante, Okwe, recupera a dignidade, a capela inexpugnável do seu corpo. Na verdade, o seu coração. De forma murmurada, num aeroporto, Okwe anuncia (a si próprio, em primeiro lugar, isso é que é bonito) o regresso a casa. É o regresso a si mesmo, de quem já se tinha esquecido. Quando chegamos a esse final, Okwe (o extraordinário Chiwetel Ejiofor) já se tornou uma das personagens mais comoventes do cinema contemporâneo.

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