O pequeno teatro imaginado de Lars Von Trier

Dezasseis actores, seis semanas de rodagem e um palco - um estúdio rodeado de neve numa pequena localidade da Suécia, Trollhatan - em que uma cidade, Dogville, Montanhas Rochosas, EUA, está desenhada a giz no chão, como uma criança teria feito. As reais dimensões da fábula podem ser apreciadas em três objectos que vão aterrar nas salas portuguesas: "Dogville", de cerca de duas horas, a duração que o realizador dinamarquês se comprometeu a não ultrapassar; "Dogville" na sua versão longa (cerca de 2h e 50 minutos), lançada no Festival de Cannes; e "Dogville Confessions", documentário de Sami Saif sobre o processo criativo em Trollhatan, uma espécie de "making of" tão pouco convencional como a rodagem que documenta. Quem vir um alce, ou outro animal assim que aparece nas fábulas cobertas de neve, não se enganou, entrou dentro do espírito...

"Era uma vez..." um grupo de actores e o seu anfitrião, condenados à imaginação num espaço fechado. Dezasseis actores, um palco e seis semanas de rodagem - eram estes os desafios do jogo.

Porque é que eles - Nicole Kidman, Paul Bethany, Lauren Bacall, James Caan, Chloe Sevigny, Stellan Skarsgard, Jeremy Davies, Harriet Andersson ou Ben Gazarra - foram à Suécia, só eles o saberão. Mas podemos adivinhar que, para além do peso do nome de Lars von Trier, das expectativas mediáticas (e o que isso traria de visibilidade para a vontade de protagonismo de alguns) e da faceta de proeza a que o projecto se abria, houve um desejo de risco e de jogo infantis - os actores, eles o dizem, gostam de se rever na pureza das crianças.

O que eles encontraram em Trollhatan podemos ter uma ideia em "Dogville Confessions": algo entre o fascínio e a decepção; com o desnorte pelo meio. O documentário de Sami Saif encontrou um dispositivo de "confessionário", como uma espécie de Big Brother nórdico (mas mais como uma "caixa da verdade" com sinalização católica - Lars descobriu-se, mais ou menos recentemente, católico), onde os actores deviam entrar para carpir as suas mágoas e outras frustrações. Eis Nicole, confusa: "Às vezes Lars é um pouco duro comigo, ajudem-me, isto é muito estranho"; Lauren Bacall, naturalmente soberba: "Lars não se sente à vontade comigo. É uma pena. Pode ser que algum dia consiga"; Stellan Skarsgard, revelador: "Quando li o argumento, pensei numa criança sobredotada [Lars, claro] a brincar com uma casa de bonecas e a cortar a cabeça dos bonecos"; Ben Gazarra, sem mais: "Perdoai-me Senhor, porque tinha prometido não voltar a trabalhar com um realizador louco!"

Todos eles acabaram por permitir a fantasia de Lars de simular um pequeno grupo de teatro amador. E de se ver como anfitrião. A sensação de perda foi tanto de uns como de outro, porque Lars teve de enfrentar o facto de não conseguir responder a todas as solicitações do "cast" - já confessou que se sentiu culpado por ter convocado um enorme actor como Philip Baker Hall para, no fim de contas, não lhe dar muito mais a fazer do que um livro de Mark Twain para ler. Mas, como tudo o resto no projecto "Dogville", do que se trata aqui, fundamentalmente, é de um contrato com a imaginação. E esse espaço é mais distinto na versão dita "longa" - e aquela que melhor corresponde ao sonho de Lars: "Gosto daquelas peças de conjunto, que se sentem todas as personagens e não estamos reféns apenas do que se passa na cabeça de uma personagem a observar um mundo estranho através dos olhos dela, mas, em vez disso, conhecemos todas as personagens daquele mundo."

Podemos individualizar blocos que foram amputados da versão curta - por exemplo, que estendem a relação entre as personagens de Kidman e de Skarsgard; ou que alongam o debate final entre Grace e o pai, acentuando o desenlace filosófico imposto às personagens. Mas o mais decisivo são as "cenas inúteis", de quotidiano da cidade americana - as que inevitavelmente são as primeiras a saltar quando é preciso cortar. Por exemplo, Lauren Bacall a varrer o chão. Vendo-a (a ela e a Gazarra ou a Jeremy Davies), inevitavelmente perguntamos: foi para isto que foram até à Suécia? (questão que a decidida Bacall nunca escamoteou; já disse que aceitou participar em "Dogville" porque não tinha nada a fazer a não ser varrer o chão). É que não se trata, então, de filmar personagens (interpretadas por actores) de uma narrativa, mas de criar um espaço de vacilação, de fissura, uma densidade mais rugosa: filmar um grupo (actores com "aura" reconhecível) no jogo, inevitavelmente frustrado, de procurar as suas personagens numa narrativa que parece ser sempre mais imaginada do que real. E Lars von Trier, com o complexo dispositivo (a que por facilidade chamamos "câmara") que lhe permite colar-se aos actores (vê-se em "Dogville Confessions", parece um monstro intruso) consegue tactear esse processo, invisível, íntimo, que é o contrato de imaginação estabelecido por um intérprete.

O filme também propõr um contrato assim com o espectador. Vamos imaginar? Quem vir um alce, ou outro animal daqueles que aparece nas fábulas cobertas de neve, não se enganou...

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