E nem Deus lhe vale?

É preciso admitir que o caso é bicudo: o que fazer quando se tem um armazém de talento como é o caso de Jim Carrey? O que fazer depois de se ter arriscado na corda bamba em objectos inqualificáveis como "Ace Ventura-Pet Detective", "Máscara" ou "Homem na Lua" (este talvez a mais assombrosa presença de um actor americano nos últimos anos)? Fazer o mesmo, é ser acusado de repetir a patifaria; tentar a inversão de registo, é convidar a que se note que o comediante está a pedir que o levem a sério, que o considerem "actor". É pior tentar as duas coisas ao mesmo tempo - parece pedido de desculpas.

É um dilema o caso Carrey porque é verdade que, para além dos exemplos citados, ele não tem encontrado direcção para a sua energia; ou é mais do mesmo ou então o aprisionamento, como se lamentasse ser o que é. Não será por acaso que a partir de certo momento da carreira do actor - sensivelmente a partir de "The Truman Show" -, o modelo Jerry Lewis, que escorria da máscara em desagregação de Jim, começou a dar lugar ao modelo James Stewart num filme de Frank Capra.

O problema continua irresolúvel, como mostra "Bruce, o Todo-Poderoso", que é dirigido por um dos homens que encontrou Carrey na fase mais indomável da sua ascensão, Tom Shadyac ("Ace Ventura-Pet Detective"), e que pelos vistos também não sabe o que fazer com o bicho. Jim Carrey deverá estar a amaldiçoar o talento que Deus lhe deu - se é que Deus teve algo a ver com o caso; tem, no caso de "Bruce, o Todo-Poderoso".

Um repórter de TV, Bruce (Carrey), farto de não ser apreciado, farto de ser ultrapassado na carreira profissional, amaldiçoa Deus, invectiva contra ele (melhor, contra Ele). E Deus faz-se ouvir: "Aqui estou, meu filho".

Deus vive num apartamento branco (o Céu, é sempre branco e vazio nos filmes), e tem a cara negra de Morgan Freeman. Deus dá a oportunidade a Carrey de ser todo-poderoso durante alguns dias, coisa que Carrey vai também amaldiçoar. Porque é preciso manipular o destino, coisa aleatória. E etc., e etc., e temos então (eis o preso por ter cão, preso por não ter...) Carrey com tempo para repetir esgares e com o resto do filme direcionado para a enésima variação da comédia capriana, com a integração do herói e a sua domesticação. Nada disto seria obstáculo relevante se a comédia fosse relevante. Mas não. Nada aqui é Carrey de primeira água; nada aqui mostra imaginação para além da tarefa (Carrey precisa de um cineasta tão exótico quanto ele; será o caso de Michel Gondry/Charlie Kaufman em "Eternal Sunshine of the Spotless Mind"?). Até as, agora incontornáveis, cenas que ficaram de fora, arrumadas como bónus para o genérico final, não devem nada à espontaneidade - por pouco nem estariam a altura de ser cenas que ficaram de fora. E já se viu melhor céu.

Sugerir correcção
Comentar