Eu, Valeria, me confesso

Quando se vê assim, saído do ecrã, um tal desejo de confissão, o espectador só se pode sentir escolhido - é a ele que as personagens contam segredos.

Veja-se o caso de Federica. É muito, muito rica, mas não aguenta o complexo de culpa. Não ajuda o facto de o namorado cantar "A Internacional", no meio do trânsito em Paris, como uma alfinetada da luta de classes (ela acompanha-o no canto, mas não é consolo...).

Muito menos ajuda o silêncio tumular da irmã, uma "directa" por Federica ser a preferida do pai. E não ajuda também o facto de Federica enganar o namorado com um ex-amante.

A culpa é irreprimível - pobre menina rica, às vezes até lhe custa respirar - e Federica parte em corrupio para o padre e para a confissão. Porque, diz o ditado, é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. O consolo, mesmo, é o reino dos sonhos - e dos sonhados acordados -, onde é possível a Federica jantar com os raptores que ameaçaram os seus pesadelos de infância, onde passado e presente, realidade e fantasia (em imagem real e em animação) se misturam num fluxo ideal e libertador.

É esse também o caso de Valeria Bruni-Tedeschi, 39 anos, menina rica. Nascida em Turim, é filha de um industrial italiano e de uma pianista. A família viu-se obrigada a partir para Paris, nos anos 70, fugindo das Brigadas Vermelhas. Em 1986, aos 24 anos, Valeria entrou para o Teatro des Amandiers e conheceu Patrice Chéreau. A partir daí tudo começou, com outros encontros decisivos, com teatro e com filmes - o encontro, como actriz, com Laurence Ferreira-Barbosa em "As Pessoas Normais não Têm nada de Especial" (1993), história de uma personagem na fronteira da "normalidade" e da "loucura" que marcou a entrada em cena no cinema francês de uma energia imprevisível, a pedir psicanálise para ser redireccionada, que fez escola.

Valeria estreia-se agora como realizadora, num filme, "É mais Fácil Um Camelo...", em que também é actriz - é ela que interpreta Federica. Para o qual chamou a mãe, que faz de mãe dela. Em que tem uma irmã que toca guitarra, como ela, Valeria, tem na "vida real". Onde sonha com Itália, com o cinema italiano da época de Fellini e com as Brigadas Vermelhas. Para se estrear, era necessário começar assim, passar ao espectador a sensação de que está a contar-lhe segredos de biografia?

auto-recriação

"Sim, era importante mostrar alguém à beira de se confessar, porque para mim o que se passa nas imagens, mesmo como actriz, tem a ver com isso", conta Valeria, num encontro em Lisboa com o Y. "A confissão inspira-me. Sendo o meu primeiro filme como realizadora, para escrever o argumento coloquei-me nessa posição: vou-me confessar. Não é importante o que se revela, mas a sensação de ter necessidade de revelar. É isso que me leva à personagem, Federica, alguém que tem uma necessidade, uma urgência - ela corre - de se confessar."

"É mais Fácil Um Camelo..." diz-nos algo da sua biografia? Como todos os artistas que nas suas obras dão sinais de exposição, quando fala sobre o que fez Valeria fecha as portas que antes pareceu escancarar. "Por um lado há esse lado confessional, mas na verdade trata-se de personagens, é uma história, é um filme. É a vida, sim, mas feita filme. Como sempre, parte-se da nossa realidade, mas depois isso deixa de ser importante. O que é verdade e o que não é verdade? Tudo é verdade e tudo é ficção. É como nos sonhos. É autobiográfico? Um pouco, sim. Havia a realidade, que se transformou em argumento que se transformou noutra coisa. Quando se pergunta se é autobiográfico, quer-se saber o quê? O que é a vida real? Justamente, este é um filme que fala disso: não há uma vida real. Porque é um filme em que é difícil distinguir entre presente e passado, idade adulta e infância, sonho e sonho acordado. É um filme que fala dessa vida com muitas dimensões diferentes." E que se coloca no terreno arriscado de ser "uma coisa e o seu contrário, com o ritmo do musical e a experiência do tempo de olhar para as pessoas, algo que vem do documentário, género que realça que acima de tudo amamos as pessoas que filmamos".

Portanto, se se quiser saber: não é um filme que espreita a intimidade de Valeria, é um filme que se abre ao seu espaço íntimo; não é biografia, é (auto)retrato. Sempre vimos Valeria como actriz. A partir de agora, podemos ver Valeria, como Woody Allen ou Nanni Moretti (ela atemoriza-se: "Não me queria pôr a essas alturas"), como "personagem", algo que é ela própria e auto-recriação circense.

Este gesto fantasista (à falta de melhor) poético é mais relevante do que o seu resultado. Mas é suficiente para nos fazer olhar para trás e ver que mesmo a trabalhar para os filmes dos outros, Valeria Bruni-Tedeschi fazia já o seu filme - a confissão como impulso narrativo, a relação com a infância e os sonhos como material criativo. Deus e psicanálise nos caminhos da autoficção. (Valeria pratica os dois cultos com fervor. "A confissão religiosa e a psicanalítica são duas demandas. Na psicanálise, é a procura da verdade de nós próprios. Na religiosa, é estabelecer uma comunicação com o céu, algo que, afinal, nos é interior. Este filme é como uma sessão de psicanálise. Mas de onde ela está figurativamente ausente." No lugar do psicanalista, o padre.)

a infância

É a forma como uma realizadora ilumina o seu trabalho de actriz - como se ele já fosse trabalho de autor - que é então mais original. "Para mim, só criamos através da relação com a infância. É isso que está presente no trabalho que faço", concorda. "É claro que é um filme que só fala de adultos, mas os adultos aparecem como crianças. Ou seja, há a consciência de que somos verdadeiramente nós quando somos crianças. E de que há sempre algo escondido na infância que determina o que somos."

E é fácil imaginar - "imaginar", para ser fiel à fantasia ... - Valeria a recuar na memória em direcção à gaiola dourada da infância, uma casa grande sem pais presentes. Quando vivia afastada dos outros, pelo medo dos raptos. "Lá dentro não me sentia livre. Sentia-me livre na minha cabeça. Aí sim, porque há uma grande liberdade no jogo infantil. De repente, atravessa-se o Atlântico num segundo e quase que se ouve o motor dos barco."

Nesta fantasia infantil, os actores - Emmanuelle Devos, Yvan Attal, Chiara Mastroianni - são convidados para a pantomima da realizadora, para os seus jogos. Valeria, por exemplo, quando conhece alguém joga sempre assim: "Estou sempre a imaginar essa pessoa como criança. Quando escrevo uma personagem, mesmo de um adulto, imagino-o em criança. Emociona-me sempre ver pessoas e imaginá-las aos seis anos. Para crescer, para dar azo aos nossos desejos, aproximamo-nos da infância. É isso o que há a fazer quando estamos a escrever e a desenvolver personagens."

E nos jogos da imaginação, os pais têm sempre o mesmo rosto: é o passado com a cara do presente (talvez só com uma peruca, que reforça a mascarada). É assim nos jogos e nos filmes de Fellini. Valeria, francesa de adopção mas italiana por vocação, tem em si inscrito um património de sonhos acordados e de passado com as rugas do presente, um cinema italiano que já não existe.

"Não fiz um filme à maneira de..., mas sou italiana, sou banhada por filmes italianos desde a infância. A minha mãe via filmes de Fellini. Não sou grande conhecedora de cinema, mas isso faz parte do meu inconsciente", reconhece. "Reflectimos sobre como filmar os sonhos e o passado neste filme, e sempre tive a intuição de que nas cenas do passado os pais deveriam ter a idade de hoje. Porque para as crianças os pais têm sempre o mesmo aspecto. Quando os imaginam, imaginam com a idade que têm no presente. Talvez tenha pensado em Woody Allen [que, acrescentamos, terá pensado em Fellini] para ficar mais segura, porque outros já o tinham feito. Quis filmar as cenas de infância a preto e branco, mas dei-me conta de que isso seria exactamente o contrário do que queria fazer. Porque queria falar de realidades que se confundem, de não haver grande diferença entre o 'agora' e o 'antes'. Como nos sonhos, as sequências fluem como que animadas por uma varinha mágica. É a confusão dos mundos. O que é mais real: a Valeria que está a falar consigo ou aquela que sonha dançar uma valsa consigo? Se calhar é mas real o sonho da valsa."

Mesmo no fim da valsa... Federica é uma menina rica com um fardo: tudo o que faz corre o risco de parecer um "hobby" segundo o olhar acusador dos outros. E Valeria: já sentiu esse cliché? Último passo de valsa: "Nunca. Criar, para mim, é um processo doloroso, levo tanto tempo a conseguir que as coisas saiam... Quando as pessoas me viram pela primeira vez a protagonizar um filme, tinha 28 anos. Mas já tinha dez de escola, de estágio, de curtas-metragens, de pequenos papéis. Para mim as coisas não são fáceis, e acho que isso passa para as pessoas. Sou, sim, uma pessoa com a sorte em fazer encontros decisivos. Isso é que é o luxo: Chéreau, Mimmo Calopresti [que a dirigiu em "La Seconda Volta" e "Mots d'Amour"], Laurence Ferreira-Barbosa, pessoas excepcionais que me inspiram. À parte isso, que é enorme, as coisas são difíceis para mim. Sinto sempre que não tenho legitimidade."

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