No laboratório do Dr. Ang Lee

O que é que se arrisca a fazer um realizador, nascido em Taiwan, mas a viver na América, especialista em obras intimistas sobre o encontro de culturas e o choque de gerações, com um pedaço (radioactivo?) de cultura pop americana nas mãos?

O que é que pode fazer um cineasta, que nunca realizara um filme com orçamento superior a 30 milhões de dólares, a braços com uma produção de 120 milhões, para a qual lhe deram, ainda por cima, o direito ao "final cut", ou seja, a possibilidade de não ter de seguir instruções de ninguém quanto à montagem final?

Esse realizador, arriscou-se a criar um monstro, o "summer action blockbuster". Pior do que isso: a fazer do "summer action blockbuster" uma coisa bizarra, distorcida, esquizofrénica, o "blockbuster de autor!". "Será que consigo controlar isto. Não sei. É muito grande", terá dito esse realizador, e podemos imaginar um "balão" por cima, o esgar de horror e prazer no rosto enlouquecido, e o grito, como um trovão arrepiante, "arrrgghhhhhh!".

Ang Lee, 48 anos, pintor de retratos intimistas, como "O Banquete de Casamento" (1993), "Comer, Beber" (1994), "Sensibilidade e Bom Senso" (1995), "A Tempestade de Gelo" (1997) ou "O Tigre e Dragão" (2000) - bem, é um épico intimista... - é o inesperado realizador de "Hulk", a transposição para o cinema da personagem, criada por Stan Lee e Jack Kirby em 1962, de um tímido cientista, Bruce Banner, que um acidente radioactivo condenou a ficar com um monstro verde dentro dele. É certo que Ang Lee é o autor do filme estrangeiro de maior êxito de bilheteira nos Estados Unidos, "O Tigre e o Dragão". Essa é a verdadeira razão por trás da proposta feita pela Universal, ainda por cima num contexto de inflação de "franchises" a partir do mundo dos "comics" da Marvel. Mas o que é que levou Ang Lee a aceitá-la?

Se calhar temos uma ideia errada dele. Um cúmplice desde as primeiras horas, o produtor e argumentista James Schamus, levantou o véu sobre o verdadeiro rosto do realizador. Disse, numa entrevista, que as pessoas se enganam com a simpatia de Ang Lee, "porque é o tipo mais simpático do mundo, mas o mais ambicioso no que toca à sua arte. É um general que as pessoas querem seguir".

Para além das revisões de temperamento a que estas declarações de Schamus poderão levar, o que elas iluminam - é certo, com a ajuda do próprio Ang Lee, que disse que "Hulk" se apresentava como "a transição ideal para uma grande produção hollywoodiana" - é a natureza verdadeiramente "experimental" do trabalho do cineasta. Que, vendo bem e olhando para trás, não é propriamente uma novidade.

Um parêntesis para tirar ilações biográficas: nascido em Taiwan e estranho na cultura americana, Ang Lee tem olhado para a sua cultura de adopção com fascínio e também com distância. Nessa mescla de objectividade e de humildade perante as personagens reside, por exemplo, o extremo pudor e o fascínio de "A Tempestade de Gelo", filme que se passa na América dos anos 70. Mas Ang Lee também não se sente em casa como chinês. Por isso "O Tigre e o Dragão" foi a (re)descoberta de um património cultural, a tradição das aventuras de "capa e espada" chinesas, como se ele estivesse adormecido na sua memória.

Fechando agora o parêntesis e prosseguindo: cineasta num limbo cultural, o que lhe deve dar uma curiosidade que o liberta de preconceitos e uma liberdade de movimentos singular, está naturalmente predisposto a pegar em restos da cultura popular - quer seja americana, quer seja chinesa - e compor com elas um outro corpo. No fundo, as condições que propiciaram que se tivesse fechado com "Hulk" no seu laboratório, para fazer com ele o tal "arrasa-bilheteiras de autor".

haraquiri

. Estranho ao mundo da BD, desconhecendo o universo da Marvel - mas, através do trabalho do seu argumentista, deixando-se influenciar pela angústia existencial e melancolia da série televisiva que, entre 1978-1982, fez de Bill Bixby o tímido Bruce Banner e do musculoso Lou Ferrigno o monstro em que aquele se transforma -, Ang Lee foi inspirar-se no negrume gótico, no "Frankenstein", de Mary Shelley, no "Dr. Jekyll and Mr. Hyde", de Robert Louis Stevenson. Ou seja, na tragédia das personagens divididas, numa humanidade que acorda, assombrada, para a sua monstruosidade. Com uns pozinhos de "King Kong" e os sinais mais evidentes de "Hulk" ficam a dever mais ao "monster movie" da Universal, nas décadas de 30 e de 40, do que à típica adaptação de BD (de tal maneira que se pode perguntar se não houve um lado suicidário na experiência, que às vezes parece querer fazer curto-circuito às expectativas de quem já integrou fórmulas sobre o que é um filme adaptado de BD).

A experiência é lúgubre, nunca se sai do laboratório, nunca de lá saem o dr. Bruce Banner (Eric Banna) e a sua colega Betty Ross (Jennifer Connelly). São a hipótese de par romântico, mas o romance (o desejo, o sexo) está adiado porque cada um à sua maneira é uma personagem vergada pelo peso de um trauma - o pecado é dos pais (Nick Nolte é o pai de Eric; Sam Elliot é o pai de Jennifer), o assunto é de família, aquilo que se herda, aquilo que se é obrigado a trair, como acontece na maior parte dos filmes de Ang Lee, que têm títulos que anunciam separação, esquizofrenia.

"Hulk" não os deixa sair do laboratório onde confrontam os seus pesadelos, e logo aí o filme procura outra coisa, outra experiência de tempo, para além dos cumes do cinema de acção. E é sujeito a pequenas intervenções: múltiplos pequenos ecrãs abrem, na superfície do grande ecrã, possibilidades de outros pontos de vista e de outros focos de acção. Como uma página estilhaçada de um "comic book", que multiplica as possibilidades de olhar do espectador? Seria demasiado óbvio se fosse só isso, reprodução de "overdose" de informação e de movimento à maneira da BD. O efeito é, antes, o de a própria película estar a ser alvo de mutações (como o trágico herói desta aventura). E de o tempo se suspender num "continuum" angustiante, porque o presente está refém do passado, e por isso nem se pode falar em "flashbacks" quando as personagens recordam aquilo que se costuma dizer que é a "cena original" do trauma - porque o passado está agarrado ao presente, nada mudou na vida personagens, a não ser pequenas vacilações de cenário (veja-se o momento, esplêndido, em que Jennifer Connelly encontra o pai no "presente", uma cena com o mesmo enquadramento de outra, de uma memória de infância: parece uma cintilação enviada pelo passado). A paralisia, portanto, em vez da aceleração.

É claro que há o "clou", a transformação do homem na besta, que será o momento da verdade para os fãs e para os simples espectadores. Um aviso: é lícito vacilar, até nos habituarmos, se se considerar que o monstro feito por computador parece um esboço, não perfeito, de outra criatura verde, Shrek. Mas Ang Lee tem razão quando diz que não é a morte do filme "o facto de as pessoas considerarem que os pêlos do nariz da criatura não são realistas"; porque o que é decisivo é o facto de "as pessoas investirem emocionalmente na história". Há razões para isso, para investimento emocional; há sequências, ditas de acção espectacular, deslumbrantes - Hulk no deserto, Hulk a chegar a São Francisco - que nos fazem esquecer as hipotéticas imperfeições dos pêlos do nariz. Mas há riscos tomados, quando o tom é sombrio, quando o confronto psicanalítico se eleva a experiência teatral muito anos 70 - Bana e Nolte, filho e pai, sentados, frente a frente - e não pára aí, chega às alturas do "grand guignol".

É preciso mais para pensar que "Hulk" quase faz haraquiri? E que, com excepção dos "Batman" de Tim Burton, é a melhor adaptação ao cinema de BD dos últimos anos?

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