Nos lábios dela...

Para o anterior filme de Jacques Audiard (como ele é um cineasta que se faz raro, o filme "anterior", "Um Homem Muito Discreto", já é de 1996), arranjou-se um "slogan" que dizia mais ou menos assim: "As vidas mais belas são as que se inventam."

Recorde-se, então: um homem (Matthieu Kassovitz), na França pequeno-burguesa do pós-guerra, descobria que o pai não tinha sido o herói que todos pensavam e que a mãe fora colaboradora dos alemães, e decidia reinventar-se, ele próprio, como herói, construindo um passado de resistente. Mais do que pela convocação de fantasmas e traumas da História francesa ainda não sanados, o muito discreto mas perturbante "Um Homem Muito Discreto" era eloquente pela fixação da personagem típica do cinema de Audiard: uma figura em mutação na zona pardacenta da (sua) existência, a banalidade a querer constituir-se em excepcionalidade, uma determinação tão forte e tão inocente que, sendo letal, está para além do bem e para além do mal. Na presença encolhida do magnífico Kassovitz, na sua neutralidade seráfica, havia monstros em movimento.

Agora a reinvenção é assim: Carla Bhem (Emmanuelle Devos), 35 anos, secretária de uma empresa imobiliária, move-se num território dominado por homens e minado pela misoginia. Para além de ser desprezada a nível salarial, Carla é surda. Mas consegue ler os lábios dos outros - consegue perceber, por exemplo, os palavrões que eles segredam sobre ela. Um dia há-de chegar em que Carla não vai deixar a sorte escapar.

Quando lhe dão oportunidade de escolher um ajudante, Carla dirige-se ao Centro de Emprego. Mas mais parece um pedido com as especificações de quem vai à procura de parceiro para acasalamento. E ele chega: Paul Angeli (Vincent Cassell), o estagiário, ex-presidiário, tem 25 anos e cabelo escorrido de galã untuoso.

A partir daqui podia ser, eu sou feia e inteligente, tu és belo e burro, "let's make lots of money", como dizia a canção. De alguma forma até é assim, porque de crónica da solidão urbana sentimental, "Nos Meus Lábios" transforma-se em "film noir", história de uma golpada, quando o patinho feio se transforma em mulher fatal - e assim Carla/Emmanuelle toma conta de um novo filme que nasce, que tem a poderosa economia de meios de uma série B. Mas "Nos Meus Lábios" é mais "let's make love", com igual e poderosa economia de meios (e a preferência pelas zonas de sombra), quando Carla começar a cavalgar o seu desejo. "Nos Meus Lábios" é o percurso de um despertar sexual. É a história de uma mulher que aprende a manipular em seu proveito o desejo alheio, a exibir o seu, activa, feroz, tirando-o do segredo escuro e envergonhado do quarto. Não é só nos lábios dela, é em todo o corpo. Os sentidos estão alerta, há metamorfose em movimento. E assim nasce um outro filme.

É assim que um cineasta como Jacques Audiard (para além de raro, confirma que é singular) reinventa a história do par. É uma reinvenção táctil, porque a descoberta que aqui fazem os corpos é um jogo cinematográfico amoroso, é uma experiência de labor sensual e artesanal: da fisicalidade dos actores e personagens (em todos os sentidos, de carne e osso), à memória cinéfila convocada (o "film noir", "The Honeymoon Killers", de Leonard Castle, por causa do "casal monstruoso" - referência explicitada pelo realizador nesta entrevista -, ou "Janela Indiscreta", de Hitchcock), tudo é manuseado como matéria pura, tesouro que foi (re)descoberto com o espanto dos primórdios.

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