O homem invisível

Trabalho, logo existo? A esse lema, Vincent, a personagem de "O Emprego do Tempo", resiste. Ele quer dissolver-se na paisagem, quer tornar-se invisível, ele quer furar o esquema social e matar o tempo. Entre o resistente e o fantasma, Vincent é o rosto do inclassificável cinema do francês Laurent Cantet. Que faz um filme sobre o mundo do trabalho como se este fosse o coração das trevas.

Estamos sempre à espera que o vulto se dissolva na paisagem, desapareça nos planos, que é aquilo que acontece aos fantasmas - ou a quem foge para zonas de escuridão, como é o caso dos vampiros.

Vincent não existe, é também o que parece dizer a luz branca e irrealista das neves.

Fantasmas, vampiros, um homem invisível... "O Emprego do Tempo", de Laurent Cantet, não é um filme de terror nem é um filme do género "fantástico". É a história de um desempregado que mente, que diz à família e aos amigos que tem um emprego. Ninguém sabe que as auto-estradas que ele percorre, as fronteiras que ele atravessa de carro ou os edifícios espelhados da ONU onde flutuam funcionários (todos iguais) e em que ele procura dissolver-se (ser, todo ele, igual aos outros e nessa invisibilidade construir a sua identidade), são, afinal, o seu "emprego do tempo".

Antes de mais: este esboço de narrativa parece-lhe variação de algo que já conheceu? Certamente, viu um filme, "O Adversário", de Nicole Garcia (com Daniel Auteil), baseado num romance de Emmanuel Carrère, que reconstituia um "fait-divers" que chocou a França dos anos 90, o "caso Romand": um médico fabricou a sua existência durante 18 anos e, quando estava à beira de ser descoberto, matou a mulher e os filhos e tentou suicidar-se (está hoje preso o - falso - médico, Jean-Claude Romand). Esqueça então "O Adversário", o que não será difícil perante a depuração e o mistério sinuoso de "O Emprego do Tempo" (filme que em termos cronológicos até é anterior à obra de Garcia). Laurent Cantet assume: inspirou-se no "caso Romand", mas só como ponto de partida. O que ele faz não tem nada a ver com reconstituição, é algo de mais original, que confirma, após a sua estreia na longa-metragem que foi "Recursos Humanos", que este cineasta de 42 anos é a coisa mais inclassificável a surgir nos últimos anos no cinema francês.

"O livro de Emmanuel Carrère foi publicado depois de eu ter escrito o argumento", conta Cantet numa conversa com o Y em Paris. "O caso Romand aconteceu em 1993, mas eu nunca o quis contar. Forneceu-me apenas ideias de argumento, como a da ficção de uma mentira. Romand é um caso de estudo. A minha personagem é mais banal. Alguém que pode permitir ao espectador um reconhecimento - de uma parte de si próprio, pelo menos, como o desejo de mudar de vida, as frustrações, as fraquezas. Não queria um psicopata. Romand matou a família para evitar que o julgassem pela mentira. Isso era algo de impensável para Vincent. Embora a sua história contenha também a lógica do assassinato. Quando alguém mente, matar as testemunhas parece solução evidente. O filme às vezes sugere isso. Como sugere a ideia do suicídio. Mas acho que 'O Emprego do Tempo' se define por ser um filme sobre alguém que nega a realidade".

atrás da porta.

Esse é o abismo em que se afunda um homem normal, o amável, sereno e aterrorizado Vincent (o rosto de Aurélien Recoing, o intérprete, é de uma virgindade tão sedutora quanto de uma imobilidade sepulcral). Na obra de Cantet, há sempre uma sombra a pairar sobre o homem moderno: a inclusão na máquina social e de trabalho, a definição da identidade através de uma função. Mas como é que ele, Cantet, faz?

"Recursos Humanos" (2000), filme anterior (recordam-se, o confronto entre um pai e um filho numa fábrica?), era uma obra de militância proletária contada com drama familiar em surdina - Cantet enquadrava as personagens entre portas, janelas e vidros, como Douglas Sirk (re)visto à luz de Fassbinder (e Cantet diz que sim às referências). O filme surgiu numa altura (estreava-se também "Rosetta", dos belgas Dardenne) em que se identificou uma vaga proletária no cinema francês, componente que não pode ser escamoteada nos filmes de Cantet (que até têm títulos programáticos, "brancos"), mas irrompe transfigurada; inclusivamente cobre-se de espessura metafísica em "O Emprego do Tempo".

"A leitura que as pessoas fizeram de 'Recursos Humanos' não se reduziu à questão social. Falou-se muito da relação pai/filho. Gostei disso. Tratei de um tema que me interessa, mas ao mesmo tempo não me sinto obrigado a ser 'o cineasta do mundo do trabalho'. Também não me imagino a filmar sobre um mundo abstracto. O que me interessa é saber como é que o indivíduo pode encontrar o seu lugar num mundo que não é sempre feito para ele. De há alguns anos para cá, surgem filmes que dão conta de aspectos sociais do nosso tempo, porque a sociedade - a francesa, especificamente? - decidiu olhar-se e dar a ver aquilo que está doente."

E "O Emprego do Tempo", história de uma personagem que não consegue estar à altura de um "eu trabalho, logo existo", esta narrativa da atracção de uma personagem pela invisibilidade, até se tornar sombra, o que é? Um filme de fantasmas?

"É a história que impõe o tratamento. Vem tudo com a história. Em 'Recursos Humanos' era preciso ser rude, sem forçar a via do documentário. O mundo do trabalho, o mundo sindical é-nos mostrado sempre pela televisão. Pensei num filme de Nanni Moretti, 'Abril', em que se vêem de forma furtiva imagens de barcos com refugiados albaneses a chegar a Itália, imagens que na altura víamos na TV mas daquela forma, filmadas por Moretti, adquiriam um sentido de ficção e outra textura. Essas imagens emocionaram-me. Senti esse desejo de filmar o mundo do trabalho de forma diferente do da TV, sem a urgência do jornalismo e da actualidade. Quanto a 'O Emprego do Tempo', impôs-se logo uma dimensão fantasmática, sendo simultaneamente a história de uma realidade banal, reconhecível: trata-se, afinal, de uma personagem burguesa, que vai às habituais récitas dos filhos, mas, pouco a pouco, caminha em direcção a um espaço mental que tentamos de reconstituir no ecrã e partilhar com ela."

Cantet põe sempre Vincent atrás de vidros (protegido por vidros), entre portas, confundindo-se com reflexos, tentando assegurar a sua invisibilidade. "Era importante não ter um rosto conhecido, queria alguém que fosse camaleónico, que pudesse estar nas imagens sem ser referenciado", explica o realizador. "Vi Aurélien Recoing num filme de Laurence Ferreira-Barbosa, 'A Vida Moderna', e senti que ele tinha essas características. É um grande comediante de teatro, que trabalhou com os maiores encenadores franceses (também é encenador) mas só de vez em quando põe um pé no cinema."

"Recursos Humanos" era a história de uma personagem que queria ser visível, queria encontrar o seu espaço, e por isso tentava sempre ver o que é que se passava atrás das portas. "O Emprego do Tempo" é a história de alguém que não quer ser visível. "O ponto comum entre os meus filmes é sempre a história de um homem que procura o seu lugar no mundo e que se depara sempre com uma distância em relação a esse mundo. As portas e as janelas estão lá para marcar essa distância. Em 'Recursos Humanos' as portas abrem-se mais do que aqui, porque a personagem era menos clandestina, não tinha nada a esconder. Aqui, os vidros dão-lhe distância, protegem-no."

resistência?

Mas quem é Vincent? Um resistente que fura o esquema social? A ambivalência do seu carácter (e volta-se de novo à imprescrutabilidade de Aurélien Recoing) é um dos mistérios do filme. Ele resiste mas também não consegue deixar de repetir os modelos de que foge, concretamente o modelo familiar. Como em "Recursos Humanos", "O Emprego do Tempo" é a história de um filho e de um pai. Se fosse um conto de fadas ou uma história de terror, Vincent seria a criança indefesa - surge muitas vezes na posição fetal - e o pai o predador (numa sequência, iluminada de forma lúgubre, em que Vincent dorme, o pai sentado ao lado parece tanto observá-lo como preparar-se para lhe morder o pescoço).

"O que me interessa nas relações pai/filho é que elas permitem o cruzamento entre o social e o íntimo. As relações sociais são mais fortes e difíceis de gerir se forem tocadas pelos afectos e pelo amor (e pelo ódio). São também relações de poder, de dependência, de humilhação, laços que podem existir noutro tipo de relações, mas que nas familiares são mais fortes porque também existe amor." E Vincent, resiste? É um vulto que deseja confundir-se com um cenário, perder-se no seu labirinto. Dir-se-ia que no início há felicidade nessa clandestinidade. Mas há um momento em que o cenário cede. Vincent mergulha para o coração das trevas.

"Politicamente, Vincent é alguém com uma posição radical, que põe em causa esta espécie de religião do trabalho. Na nossa sociedade, um homem define-se por aquilo que faz, pela contribuição à sociedade. Decidir que se pode viver de outra forma, é corajoso - resistente, sim", começa por responder Cantet. "Quis que se sentisse essa felicidade, algo de indizível, apenas uma felicidade de ser, de aproveitar do tempo que passa, de sentir-se levado por um 'décor'. Isso existe sobretudo no início do filme, quando Vincent faz aquela corrida com o comboio, quando canta. Mas há um momento em que um buraco se abre. Não consegui acabar o filme de forma optimista, porque não penso que seja fácil de conciliar o desejo de liberdade e a vida social".

O final é, então, uma derrota? Podemos escolher. Optando pela escuridão: "O Emprego do Tempo" terminaria naquela sequência, mesmo antes da última, em que Vincent se dissolve na noite. Cumpriria, assim, a sua utopia, que no limite seria a morte. A sequência final - luz do dia, para contrastar, um escritório, Vincent a candidatar-se a um emprego - poderia ser o sonho, ou o pesadelo, de que Vincent fugiu.

Optando pela luz (é a que Laurent Cantet prefere): "Para mim, Vincent desaparece na escuridão, para assim se diluir, como uma renúncia, quase metafísica. Mas a cena final é que é a realidade, como um murro. A tentativa de evasão falhou. Vincent regressa ao princípio. É uma imagem de contraste: depois de uma sequência sombria, de noite, há a cena de escritório." Vincent integra-se na máquina de trabalho. "Para mim, é como um suicídio", conclui o realizador. É suave, mas determinado, o "zoom" em direcção ao rosto de Recoing, que se oferece, entre a lágrima e o prazer. É por isso que "O Emprego do Tempo" mete medo.

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