O paraíso já não mora aqui

O realizador sempre imaginou a história no Outono, no Connecticut, em 1957. E começou por "ver" Julianne Moore ruiva. Depois Todd Haynes concedeu: de acordo com o figurino, ela deveria ter a cabeleira loura. Mas já na anterior "versão" ela saía de um carro azul-marinho, sob folhas a explodir de cor de laranja, e debaixo do céu. "Um bocado como 'All That Heaven Allows' ["O que o Céu Permite"], de Douglas Sirk", disse o realizador de "Longe do Paraíso".

Não é um bocado como Sirk, é muito como Sirk. De tal forma que (citando o título de um filme de 1959 do mestre do melodrama, "Imitation of Life") para alguns "Longe do Paraíso" arrisca-se a ser "imitação de Sirk": folhas mortas do Outono varridas pelo vento, carros imaculadamente brilhantes, uma paleta de cores a gritar por todos os lados (a berrar o desejo que as personagens sufocam e calam), uma cabeleira loura como a de Lana Turner, luvas, saias, verdes, azuis, douradas, e a pele tão branca de Julianne que ameaça partir. Para coroar o preciosismo, na boca dela um "bâton", Cherries in the Snow, um clássico vermelho dos anos 50 que já desapareceu do mercado, e só está acessível hoje a profissionais da maquilhagem. Ou seja, só existe no falso mundo do cinema.

E é assim que num filme de Todd Haynes - cineasta que em "The Karen Carpenter Story" (1987) ou em "Seguro" (1995) já mostrara que pensava muito em Sirk e que para ele o "décor" também podia ser algo próximo de um caixão - Julianne Moore volta a ser enterrada viva num paraíso esplendoroso: o subúrbio americano dos anos 50, com uma casa com escada no centro do "hall", dois filhos, um marido invejado, uma criada negra, "cocktails" ao fim da tarde, o optimismo da classe média branca, a paleta cromática incandescente e os códigos do melodrama. O acaso deu uma ajuda: a gravidez de Moore, durante a rodagem, começou por levar ao desespero o departamento de guarda-roupa (não parava de comer "doughnuts" e engordar, contou um divertido Todd Haynes num encontro com a imprensa no Festival de Veneza), mas deu-lhe uma voluptuosidade ("these big 50's breasts", diria o realizador) que marcaram o seu corpo com uma silhueta dos anos 50.

"Remake", então, imitação de Sirk? A proposta de Haynes é intrigante. Por quê fazer de novo, como fez Gus Van Sant com o "Psico" de Hitchcock, que assim foi transformado em natureza-morta (ou, segundo uma leitura "inteligente", numa "instalação")? Mas será mesmo isso "Longe do Paraíso"?

outing.

Eis a história: eles, Cathy (Moore) e Frank (Dennis Quaid) são um casal modelo de uma cidade americana dos anos 50, solicitado pelas revistas de moda, invejados pelo círculo social por terem concretizado o "american way of life". Mas a distância do paraíso agiganta-se quando Cathy descobre que Frank é homossexual. E quando Cathy se aproxima emocionalmente de um jardineiro, negro (Denis Haysbert), Hartford, que apesar de tudo se começa a abrir à mudança, aos anos 60 (e à arte moderna: uma exposição de Mirò desceu à cidade), ainda assim se petrifica com o escândalo. O mundo fecha-se sobre Julianne Moore, que por ficar assim tão longe do paraíso devia estar o mais perto possível do Óscar.

Quem conhece os filmes de Sirk, reparará já que aqui - no guarda-roupa, nos nomes das personagens, na silhueta física do jardineiro (uma versão negra de Rock Hudson, com o blusão que ele usava em "O que o Céu Permite", de 1954 ) - se joga na explicitação e reorganização de motivos e personagens.

"É possível encontrar já os temas da raça e da orientação sexual tratados em filmes dos anos 50," começa por explicar Haynes. "A homossexualidade não era propriamente tratada nesses filmes, mas se hoje olhamos para os filmes com Rock Hudson é difícil não os ver de maneira diferente. As suas personagens eram rígidas, e havia sempre uma subtil questionação dos romances entre as personagens femininas e ele. Os temas raciais começaram a ser discutidos de forma mais complexa no final dos anos 40, mas tudo isso sofreu um revés nos anos 50."

Dito assim, "Longe do Paraíso" será menos um filme sobre os anos 50 do que um filme sobre os filmes e as personagens dos anos 50. "Eram filmes muito bonitos e artificiais, sobre pessoas com aspecto fabuloso, que falavam de forma fabulosa e que se moviam de forma diferente de nós, mas que no fundo eram pessoas frágeis, não conseguiam articular as suas pretensões; não conseguiam derrubar as paredes da prisão que era aquela sociedade, e acabavam por sucumbir às pressões. Isso tornava as interpretações dos actores particularmente um desafio, porque tinham que deslizar sobre diálogos incrivelmente sintéticos e de convenção. A emoção era, então, articulada de forma limitada, num mundo restrito de referências, e foi isso que quisemos mostrar: a linguagem e o mundo da Hollywood dos anos 50, personagens e hipóteses de argumentos, adicionando mais algumas coisas."

Isso ("adicionando mais algumas coisas") é decisivo: "Longe do Paraíso" parece ser cópia, perfeita, mas está permanentemente a abrir brechas. Começa por sublinhar (logo no trabalho de fotografia de Ed Lachman) contornos já conhecidos, o que é arriscar matar aquilo em que se mexe - as cores, as formas, os planos de dois dos mais belos filmes de Sirk, "O que o Céu Permite" com Hudson e Jane Wyman, ou "Imitação da Vida", com Lana Turner. E como Haynes é um cineasta com a agenda dos "gender studies" (os seus primeiros filmes foram feitos sob o signo daquilo que, nos anos 80, se chamou "queer cinema") poder-se-ia reduzir "Longe do Paraíso" a uma espécie de "outing" do melodrama dos anos 50, como se quisesse trazer ao de cima o que na altura não podia ser mostrado, seja a homossexualidade ou as questões da pele - ou seja, seria manobra guerrilheira ou de revisionismo lúdico, como "Rock Hudson's Home Movies", de Mark Rappaport, que montava excertos de filmes com o actor para o espectador, sabendo o que sabe hoje da estrela, verificar (ou convencer-se que sim...) que já lá estava tudo.

Mas Haynes é mais do que um cineasta traquinas, e "Longe do Paraíso" mais do que uma manobra pós-moderna. Arrisca colocar o espectador de fora com a exibição de perfeição maníaca, mas conquista-o de volta, progressivamente, seduzindo-o com a duração, os silêncios e o destino de uma personagem encarcerada, Cathy. Começamos por desconfiar (é um filme difícil de ver sem suspeitas; é um filme difícil de ver na posição de virgindade e com as emoções em primeiro grau) e damos por nós enredados emocionalmente na sua inteligência.

Para Haynes, a superfície, as formas, são conteúdo. E, assim, "Longe do Paraíso" é uma experiência sensorial de descoberta de uma ordem sufocante e conformista, que estava no esplendor dos códigos dos filmes, e onde eram visíveis, para lá do "happy end", subtis aspirações de mudança social, de orientação sexual, desejos furtivos, logro. Como diz o realizador, era através das cores e da música que as personagens gritavam a sua história. É certo que a memória ou o conhecimento desse cinema é essencial para fruir este filme, para que se insinue um vaivém, na experiência do espectador, entre o passado e a actualidade. Sim, actualidade, porque a extraordinária sofisticação de "Longe do Paraíso" (e o que o afasta liminarmente do "remake") é em cada um dos seus planos se insinuar sempre um comentário sobre a América, hoje; se insinuar sempre, como num curto-circuito entre épocas diferentes, a abertura para o presente.

Se já não era (só) um filme sobre os anos 50, mas sobre os filmes dos anos 50, também não é um filme sobre os anos 50 porque é um filme sobre hoje. De novo, é uma questão de representação - questão política para um fanático da cultura pop, Haynes, agora à beira de preparar um filme sobre Bob Dylan. Repare-se como pela personagem de Dennis Quaid, o marido, passa simultaneamente o estigma da vitimização, conforme a representação das amarguradas personagens homossexuais nos filmes dos anos 50 (por exemplo, "Tempestade sobre Washington", de Otto Preminger) e simultaneamente é-nos dado a ver uma relação íntima homossexual (a cena no hotel) de forma casual, como num filme actual. Ou como a ruptura do casal é integrada no quotidiano de Cathy - personagem que grita por todo o lado os adereços de filme de época - com uma serenidade, digamos, contemporânea, como se ela fosse uma personagem de hoje.

"Quis utilizar os anos 50 para mostrar como a nossa sociedade mudou pouco", conclui Todd Haynes. "Durante a rodagem, George Bush acabava de ganhar as eleições, estávamos todos muito tranquilos na economia pós-Clinton. Havia uma auto-satisfação e uma sensibilidade isolacionista. Em resumo, achei que os anos 50 eram uma metáfora perfeita para isso. Hoje, que sei onde chegámos com o conservadorismo agressivo e radical de Bush, os anos 50 até já fazem figura dos mais revolucionários anos 60."

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