O Senhor dos Anéis

Depois do intervalo, o filme continua com "As Duas Torres". O neo-zelandês Peter Jackson continua a saga de "O Senhor dos Anéis" com a parte das batalhas. O espectáculo de feira segue nos próximos capítulos...

E, assim, um ano depois - mas como se tivesse sido ontem, ou depois de um intervalo ou mudança de sala -, chega "O Senhor dos Anéis: As Duas Torres", tomo II da trilogia do neo-zelandês Peter Jackson que adapta a saga de J. R. R. Tolkien. Sem narração "off" para refrescar a memória e sem cenas dos capítulos anteriores (do estilo, deixámo-los, á Irmandade, nos cumes gelados da Terra-do-Meio, quando se apertava o cerco dos poderes maléficos de Sauron, após a morte de Boromir/Sean Bean e da queda do feiticeiro Gandalf/Ian McKellen no abismo).

Não sabe do que é que se trata, não viu o filme anterior? Pior para si.

"Sei que a New Line [produtora] preferia que fizéssemos uma espécie de actualização ou auxiliar de memória, mas isso é um dispositivo muito televisivo", considerou Jackson, em declarações à revista norte-americana "Time". "Imagino que só um número reduzido de pessoas irá ver 'As Duas Torres' sem ter visto 'A Irmandade do Anel'. E se essas pessoas não estão dispostas a alugar [em vídeo ou DVD] o primeiro filme antes de ver 'As Duas Torres', então não vale a pena ir".

É certo que a pressão que se abate agora sobre o realizador é menor do que aquela que o cercava há um ano, quando, como ele contou, a dúvida obcecante era: "Será que o estúdio vai sobreviver?". Sim, sobreviveu, porque "A Irmandade do Anel" foi o segundo filme mais visto em 2001 (a seguir a "Harry Potter e a Pedra Filosofal"), facturou 860 milhões de dólares e permitiu ao pequeno (em tamanho) realizador dos antípodas o reconhecimento da relativamente "snob" Hollywood, que lhe deu 13 nomeações para o Óscar. Igualmente decisivo: o filme não traiu as fantasias dos fiéis de Tolkien.

A pergunta, hoje, que obceca os responsáveis pelo projecto é outra: "As pessoas vão gostar tanto deste como do outro?". Já não é uma questão de vida ou de morte. Por isso, pode argumentar-se: é fácil Peter Jackson dar-se ao luxo de lavar as mãos em relação à sedução de novos espectadores para o seu trabalho, prescindindo de algo que considera um "dispositivo muito televisivo" (uma indirecta a George Lucas, com quem tanto comparam Jackson, e à rival saga "A Guerra das Estrelas"?). Mas não é uma "boutade" de arrogância; é o que é específico no projecto "O Senhor dos Anéis", que, como se sabe, foram três filmes rodados em simultâneo. É que para Jackson, "As Duas Torres" não pode ser "sequela". Só pode ser a parte do meio de um longo filme que falta ver até ao fim, que já foi rodado (o realizador vem convocando anualmente a equipa e os seus actores apenas para filmar planos adicionais) e que só vai acabar de ser visto em 2003, quando se estrear o tomo final (em 2004 e chegará o DVD, com o filme todo).

Por isso, o ano que passou entre "A Irmandade do Anel" e "As Duas Torres" foi mesmo um intervalo entre sessões ou uma mudança de sala. Esse tempo não é só o tempo - "psicológico" - do fã que mal conseguiu esperar por mais um filme, porque a ser assim seria esperar por outro filme. É o tempo a que fica obrigado qualquer espectador logo às primeiras imagens de "As Duas Torres": uma duração mais mítica, "primitiva", o de uma história interminável. É a pedra decisiva para distinguir "Star Wars"/Lucas, que já pertence ao domínio do videojogo, de "O Senhor dos Anéis"/Jackson; e é aquilo que, para além das conquistas dos efeitos especiais, torna o(s) filme(s) do neo-zelandês, no seu anacronismo, objecto(s) mais aliciante(s).

espectáculo de feira. "As Duas Torres" é melhor do que "A Irmandade do Anel"?

Antes do intervalo, a Irmandade estava ameaçada pelos poderes de Sauron. Deixámos o grupo na neve, à beira de se estilhaçar, ficando cada um abandonado à aventura individual. É o que se concretiza nas cenas deste capítulo: Frodo (Elijah Wood) e Sam (Sean Astins) estão perdidos, e seguidos por um vulto, uma criatura dos pântanos, o Gollum, que sucumbiu ao poder do Anel e foi por ele deformado (é uma espécie de fantasma dos pesadelos de Frodo: aquilo em que ele se pode tornar se sucumbir às trevas).

O guerreiro Aragon (Viggo Mortensen) e o elfo Legolas (Orlando Bloom) encontram o reino cercado de Rohan, cujo rei, Théoden (Bernard Hill), foi enfeitiçado por Saruman (Christopher Lee) e pelo seu espião, o sinistro Língua de Verme (Brad Dourif, serpente em figura humana).

Enquanto isso, Merry (Dominic Monaghan) e Pippin (Billy Boyd) escapam aos tenebrosos Urûk-hai e perdem-se na Floresta de Fangon, onde encontram árvores milenares que andam e falam.

Não há que enganar: há 800 planos com efeitos especiais, contra 560 do filme anterior. Este andamento faz esforço para que se note que é mais "action-driven": depois da exposição, no tomo anterior, que alternava encenações aventureiras de deliberada fancaria com momentos de bucolismo naif, este é o filme das batalhas. Aragon, o nobre e mortal guerreiro, é o verdadeiro herói, e não nenhuma das míticas ou "élficas" criaturas. Uma batalha em particular, a do Abismo do Elmo, em que um exército de Urûk-hai ataca a fortaleza de Rohan (demorou duas semanas a ser filmada numa mina abandonada de Wellington), ocupa uma fatia essencial das quase três horas de duração do filme.

Uma avalanche de acumulação? Peter Jackson, que vem do outro lado do mundo, afastado do centro onde se decidem as convenções, continua a exibir um maravilhoso e procedimentos próximos dos espectáculos de feira. E, assim, "alternativos".

Percorrendo o menu de espectacularidade em "As Duas Torres", percebe-se (porque isso se sente no filme) que as proezas digitais têm na sua base um deslumbramento bem artesanal. O Gollum foi criado por computador, mas é a mais humana das criaturas digitais. Na verdade, um actor de carne e osso, Andy Serkis, deu-lhe vida, gestos (interpretou a personagem como "um junkie", disse), enquanto um computador captava os seus movimentos, que depois reproduziu. Nasceu uma figura espantosa, dilacerada (na sua humanidade?), que materializa os fantasmas de todas as personagens do filme.

A Batalha do Abismo do Elmo mistura acção real, miniaturas (68) e software sofisticadíssimo (10 mil guerreiros virtuais, cada um deles com vida própria), mas o que se ouve é mesmo espírito de caserna. Os gritos foram captados num estádio de Wellington, onde se desenrolava um jogo de "cricket" entre a Nova Zelândia e a Inglaterra: Jackson pediu a 25 mil espectadores que batessem os pés, para simular um exército em marcha, e que entoassem cânticos guerreiros, repetindo o que aparecia no ecrã do estádio. Sofisticado e verdadeiramente "chunga". A coroar tudo, Merry e Pippin empoleirados numa árvore ambulante, observando do alto as aventuras na Terra-do-Meio, como consciência da aventura e da sessão que se desenrola. Esses espectadores apoiados por uma árvore de fancaria somos nós - ou o espectador ao lado, que vai bichanando. Depois do intervalo, segue-se "O Regresso do Rei". Sem cenas dos próximos capítulos.

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