Aki é Kaurismaki

<b>Desprotegidos de todo o mundo: univo-os e procurem refúgio no cinema do finlandês Aki Kaurismaki. Esta semana estreia "O Homem sem Passado", sonho proletário a cores. Para a semana é "Juha", sonho de cinema mudo a preto e branco.</b>

Um homem, sem nome, chega à cidade (de comboio, como num "western"). De onde vem? Não vamos ter tempo de o saber (por agora), porque antes de ser personagem essa figura é brutalmente agredida na rua e perde a memória de quem foi. No plano seguinte, é já um corpo envolto em ligaduras, sem rosto ou identidade, em coma. Nesse momento o "western" urbano parece querer transformar-se em fantástico (podia ser um filme de James Whale ou de Tod Browning).

A morte do "homem invisível" é proclamada pelos médicos. Corpo enfaixado, múmia. Este é um plano de passagem. Justamente: embora o monitor do electrocardiograma continue a não mostrar sinais de vida, o espectro, inexplicavelmente, levanta-se. E passa, para outro plano, passa para outro lado. Para onde?

Para o cinema de Aki Kaurismaki, que acolhe os náufragos da existência (e que assim colocou a Finlândia no mapa de referências cinematográficas mundial).

Em "O Homem Sem Passado" há operários e deserdados em "roulottes" e debaixo do céu azul. Têm o olhar abatido de tanto medir a infelicidade (até um cão, ferozmente chamado de "Hannibal" - na realidade, apesar de nome tão viril é uma doce cadela). Mas, história de um amnésico que tenta reentrar no tecido social, "O Homem Sem Passado" também é comédia e musical, com uma "jukebox" de outros tempos a debitar um tango ou um velho "rockabilly". O cinema de Kaurismaki faz-se de personagens à procura de refúgio mas sem autocomiseração. Para eles (e, pelos vistos, para lá da morte deles) o realizador transforma o negrume em fábula. Neste caso, a cores e como um sonho minimalista de um Exército de Salvação.

O cinema de Aki Kaurismaki é essa costa onde chegam os deserdados. Há nobreza, que se mede pela forma hirta como as personagens caminham e debitam diálogos (falam à beira das lágrimas, mas nunca cedem, nunca perdem a compostura, a impassibilidade).

Há sentido caloroso, e orgulhoso, de pertença a uma família, os excluídos do milagre económico finlandês, a Finlândia "invisível" do desemprego (mais universalmente, do mundo), ou, de forma mais prosaica, o grupo de actores com quem habitualmente o realizador trabalha (onde todos têm a mesma dignidade, e onde pertence "Hannibal", esse cão que afinal é uma cadela, neta de uma tal "Laika", que se chamava "Baudelaire" num anterior filme do realizador, "La Vie de Bohème", e filha de uma outra, "Piitu", que entrava em outro filme do finlandês).

E há códigos a aprender. Afinal (vamos saber mais tarde) o homem sem passado vem de outra existência e de outra classe, e está a fazer a aprendizagem (para além do amor, claro) do proletariado e da solidariedade. Como uma espécie de "new deal" rooseveltiano, à escala individual, finlandesa e sonhada pelo cinema. É legítimo lembrarmo-nos de Frank Capra, o cineasta do "new deal" e da Depressão americana, e de todos os filmes da Hollywood do passado. Aki Kaurismaki, cinéfilo caloroso (antes de realizador, foi crítico), conhece-os a todos. Tantos quantos aqueles que diz não ter vontade de conhecer: "Não tenho confiança nos filmes de hoje, e não tenho vontade de ver cinema moderno", resume, e não pode impedir que lhe chamem reaccionário.

O cinema do finlandês é anacrónico, e quer ser político ("sou um cineasta político", diz ele) ao dar visibilidade aos "invisíveis" e pondo-se ao lado do cinema que "já não se faz". É esse o encanto, mesmo que se tenha que reconhecer que em outras alturas da sua obra o cineasta Aki Kaurismaki foi mais inebriante. Por exemplo, em "Nuvens Passageiras", de que "O Homem Sem Passado" parece um "remake" (mas, e isso também é verdade, o facto de ser um bocado do mesmo torna-o uma reconfortante passagem de reconhecimento, e isso jogou a seu favor no último Festival de Cannes, onde recebeu o Grande Prémio do Júri e o Prémio Melhor Actriz, para Kati Outinen - ver texto nestas páginas).

Qual seria, então, a suprema utopia neste exílio voluntário de um cineasta? Sonhar: "Era tão bom que isto fosse um filme mudo", e concretizá-lo. Ora, Aki Kaurismaki fê-lo, e o resultado, uma obra de 1998, vai estrear-se comercialmente entre nós na próxima semana, numa operação Kaurismaki X 2 lançada pela Atalanta Filmes. Chama-se "Juha", e é um desafio: um filme sem palavras e a preto e branco, onde sopra o vento de um cinema que, como a personagem de "O Homem Sem Passado", já está do lado de lá. O "cinema mudo".

O que é que sente ao ver filmes mudos, de realizadores como Charlie Chaplin, Erich von Stroheim, Murnau ou D. W. Griffith, perguntaram um dia a Aki. Ele respondeu: "Sinto sempre a mesma tristeza. Nunca serei um cineasta tão grande [como os realizadores citados], mas continuarei a tentar, e não desistirei." Kaurismaki continua a tentar, esforça-se, mas os seus filmes ganham por respirarem essa inevitabilidade da perda. A melancolia pode querer ser também isto, um lamento pela ausência do mundo perfeito, dos modelos: o mudo. Mas "Juha", justamente, é esplendoroso porque dele estão ausentes manobras "retro" ou pós-modernas (ou, palavrão maior, "metacinematográficas"). Por falar nisso: é mais arriscado do que as canções "sem palavras" e o disco "sem título" dos islandeses Sigur Rós.

Os mais de 100 filmes mudos que Kaurismaki viu e estudou antes de se atirar para este desafio de um "silent movie" não estão em "Juha" como bricabraque de cinefilia. É uma "escrita" perdida no vento que o realizador resgatou, ouvindo a música que ele ainda sopra - no fundo, como nos seus melancólicos filmes sonoros, em que os actores estão atordoados por um assombro qualquer, perdidos num tempo que não é passado, não é presente. Esse é o mundo em que os planos, os sentimentos, os olhares e os gestos se constroem como conceitos, se elevam como abstracções. São códigos interiorizados, e uma ética. Não há que enganar. Primeiro plano de "Juha", a felicidade: uma moto, um homem e uma mulher (os intertítulos apresentam-nos: ele é Juha, ela é Marja - Kati Outinen, "musa" do realizador). Plano seguinte, a ameaça que vem da cidade, como em "Aurora", de Murnau: um carro a alta velocidade e os cabelos ao vento de Shemeika (André Wilss). Está lá para ser visto e sinalizado: no "capot" do automóvel do sedutor está escrito "Sierck", de Detlev Sierck, o verdadeiro nome de Douglas Sirk. Claro, é a marca do melodrama.

Esta é uma história de descoberta sensual e de escravidão sexual. Triângulo amoroso, mulher abandona marido, mulher encontra desespero (o sedutor tem um negócio de prostituição), mulher fica grávida, marido salva mulher e criança, marido morre. Depois do calvário, a redenção. E durante o filme, uma economia perfeita das imagens e uma economia perfeita da sugestão sonora. E mais do que isso.

"Juha" passou a ser o que é hoje quando o compositor Anssi Tikanmaki, fundador da Anssi Tikanmaki Filmorchestra (orquestra de câmara que tem "interpretado", e assim "traduzido", obras-primas do mudo para o público de hoje), se mostrou interessado em ajudar o cineasta a concretizar a ideia de um filme mudo. A Anssi Tikanmaki Filmorchestra construiu para "Juha" uma combinação de estilos musicais, do folk ao jazz, passando pelo tango, pelo blues e "rockabilly", com erupção de sons interiores à cena, como portas a bater, o barulho da ignição dos carros (as primeiras apresentações do filme era feito com música ao vivo), e que tornam a banda de som menos acompanhamento das imagens e mais rajadas, intervenções de emoção. Como um diálogo no território das sombras.

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