"Serrana", de Keil, inaugura temporada lírica do São Carlos

Estreada em 1899, a ópera "Serrana", do compositor Alfredo Keil (1850-1907), é uma das poucas obras de compositores portugueses que foram apresentadas no Teatro de São Carlos durante o século XIX. É, aliás, a última grande obra do seu autor, o qual dedicou à composição uma parte significativa da sua vida, isto apesar de nunca ter sido consensualmente considerado um profissional no âmbito dessa actividade. Estreia hoje, pelas 20h, no Teatro Nacional de São Carlos (TNSC), na abertura oficial da temporada lírica do teatro lisboeta.

A música foi também aquilo que o fez despender uma considerável parte da fortuna familiar, quer no financiamento da montagem das suas óperas, quer na compra dos instrumentos musicais que faziam parte da sua colecção pessoal e que hoje constituem o núcleo principal do Museu da Música. Autor da marcha "A Portuguesa", que foi escolhida como hino nacional pela República, em 1911, Keil foi um defensor da causa da música nacional, reflectindo assim algumas das preocupações mais características do seu tempo. Esta ópera de Keil, a terceira do seu catálogo, foi representada pela última vez há 23 anos, sendo que não existe no mercado nenhuma gravação comercial da mesma. Esta é, portanto, uma oportunidade extraordinária para avaliar uma obra que ocupa um lugar bastante importante na história da música em Portugal.

Uma "ópera da saudade"

A decisão de convidar um encenador francês e um maestro italiano para esta montagem deveu-se à intenção do director artístico do TNSC, Paolo Pinamonti, de proporcionar uma interpretação internacional de uma ópera que, até hoje, tem tido uma difusão exclusivamente local. Em coerência com este propósito, grande parte dos papéis protagonistas foram entregues a cantores não portugueses, embora possamos contar com a participação de Jorge Vaz de Carvalho e de Carlos Guilherme, entre outros. A conversa do PÚBLICO com o maestro Donato Renzetti e com o encenador Christian Gagneron revelou a pertinência dessa decisão, mas também as dificuldades que ambos tiveram na sua primeira abordagem da obra.

Donato Renzetti começou por confessar a "perplexidade" que lhe provocou a sua primeira leitura da redução para voz e piano da ópera: "Na primeira semana não percebi absolutamente nada da obra. Achei que era uma ópera muito estranha". Contudo, à medida que prosseguiu o seu estudo, foi encontrando "os modelos de que Keil se tinha servido: a ópera francesa, 'Carmen', de Bizet, que foi decerto uma das suas grandes influências, e a ópera italiana, particularmente 'Cavalleria Rusticana', de Mascagni - esta última revela-se no temperamento sanguíneo que 'Serrana' demonstra", diz.

Para o maestro italiano, Keil pode ser definido como um "verista-impressionista". Na sua opinião, o compositor procura o "verismo ao mesmo tempo que revela o seu impressionismo no gosto pelas imagens musicais que vai enlaçando ao longo da obra". A partitura "não está idiomaticamente bem escrita para os instrumentos, embora o resultado sonoro final seja notável", refere o maestro, destacando ainda alguns "achados orquestrais que antecipam, por exemplo, obras de Richard Strauss". Conclui afirmando que, embora deva ser considerada "uma ópera menor no contexto internacional da sua época, merece ser recuperada, pelo menos em Portugal".

Por seu turno, Christian Gagneron começou por afirmar que a sua primeira reacção ante a obra foi "inquieta e dubitativa". Tal como o maestro Donato Renzetti, no início ficou também "perplexo" ante uma obra cheia de contradições, que reúne "elementos melodramáticos típicos do verismo, sendo ao mesmo tempo uma tragédia".

A primeira coisa que o fez, no entanto, prosseguir a abordagem da obra foi "a sinceridade do seu autor, o facto de ter encontrado uma vontade, um desejo de dizer qualquer coisa". Assim, tendo como ponto de partida as afinidades entre "Carmen" e "Serrana", na mesma medida em que foi aprofundando o seu estudo e a leitura de várias obras de autores portugueses, foi centrando a sua atenção sobre a personagem de Zabel, "uma vítima da miséria que mostra, em toda a sua brutalidade, uma impressionante dimensão trágica". Para Gagneron, essa dimensão é profundamente portuguesa, porque "a sua tragédia apenas ganha sentido quando se interpreta sob o prisma do sentimento da saudade: Zabel é uma heroína da saudade". As suas acções desenvolvem-se numa espécie de dimensão onírica, que é partilhada com o resto dos protagonistas e que contrasta com a pressão das regras e das convenções, representadas na ópera pela Montanha e pelo Coro".

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