Sam Mendes o Contador de Histórias

Sam Mendes tinha consciência do que o esperava: "Quando aceitamos fazer um filme de um género que grandes cineastas já trataram, é nosso dever procurar novas formas de expressar certas coisas. Mas as pessoas nos anos 30 usavam as roupas e andavam nos carros que já vimos em muitos filmes. Por isso, mudar por mudar não faz sentido. Ser cineasta e ser contador de histórias são coisas diferentes. Estou mais interessado em contar uma boa história, sobre seres humanos numa determinada paisagem. É inevitável que isso evoque outros filmes. 'Era uma vez na América' foi talvez a maior influência de 'Caminho para Perdição'. Mas temos de nos orgulhar dessa tradição. Se queremos fazer algo de mais aventureiro em termos estilísticos, o melhor será fazer um filme contemporâneo".

São declarações do realizador no último Festival de Veneza, e revelam pelo menos a consciência de que "Caminho para Perdição" tem atrás de si uma tradição intimidante - filmes como "Bonnie & Clyde", de Arthur Penn, "Era uma Vez na América", de Sergio Leone, ou a série "O Padrinho", de Coppola, foram, Mendes contou, influências.

Mas serão declarações em perda? É que o filme não suporta o peso da linhagem. As declarações de Mendes têm mesmo um efeito de "revelação". Assume-se não como "cineasta", mas como "contador de histórias". Como se antecipasse a sua defesa? Certamente repõe-se neste filme uma verdade. A de que a estreia no cinema do encenador Mendes, com "Beleza Americana", foi um momento singular, onde se cruzaram "espírito do tempo", aura de intérpretes, a energia bizarra, iconoclasta e auto-destrutiva, de um argumento (marcas de Alan Ball, da série "Seis palmos de terra"), mais do que uma visão - criativa e transgressora - de cineasta. Mendes ilustrou. Mendes é um "encenador" de argumentos, e será mesmo um normalizador de "desvios". "Caminho para Perdição" é o filme de um aluno aplicado, que folheou a história do filme de "gangsters" - a história pictórica, sobretudo - e que foi incapaz de transcender a lição. Há um momento paradigmático: o confronto entre Tom Hanks (decididamente incapaz de libertar algo de letal com o seu mutismo) e Paul Newman, "filho" e "pai". É um ponto culmimante no frente-a-frente trágico que se vai preparando. Está tudo (cenograficamente falando) no lugar. Até a chuva - sobretudo a chuva. Mendes tira o som, ficam os relâmpagos das metralhadoras, a música, a câmara lenta. O preciosismo é evidente, e no entanto... a sequência é a declaração de uma incapacidade. "Ser cineasta e ser contador de histórias são coisas diferentes". Era isso que Sam Mendes confessava?

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