Auch!, Vinte Anos Depois

"Vem", diz ET. "Fica", responde-lhe Elliot. "Auch". Quem não chora com "ET" é um "exilado da emoção humana"? Foi com este debate que a crítica portuguesa recebeu o filme de Spielberg há 20 anos. Novas gerações vão vê-lo pela primeira vez, na versão comemorativa que hoje é lançada. A emoção ainda está lá?

Portugal estava à beira de mais uma crise política, com o Governo de Pinto Balsemão a preparar-se para se demitir. Era o último mês de 1982, o ano da guerra das Malvinas/Falklands, em que morria na velha URSS Leonid Brejnev, substituído por Iuri Andropov, o ano dos massacres de Sabra e Chatila no Líbano, e da fuga de Yasser Arafat para a Tunísia. Saddam Hussein já estava no poder e o Iraque combatia o Irão. Em Inglaterra, Carlos e Diana anunciavam o nascimento do primeiro filho.

Os portugueses entusiasmavam-se com os Heróis do Mar, e viam a série Dallas num dos dois únicos canais de televisão. E, nas vésperas de Natal, enchiam as salas dos cinemas Mundial, Alfa e Berna, em Lisboa, por causa de "ET - O Extraterrestre", de Steven Spielberg. "Ele está aí", anunciava a capa da Revista do semanário Expresso, para apresentar o seu dossier sobre o extraterrestre de pescoço extensível, pernas curtas, olhos enormes e coração vermelho que se ilumina emocionado. Esta criatura, para o jornal francês "Libération", era o "Homem do Ano".

"Há 20 anos atrás não se fazia na imprensa portuguesa um dossier daquela dimensão a propósito de um filme", recorda hoje o crítico João Lopes, "muito menos sobre uma grande produção americana, e um autor sobre o qual dominava ainda um ponto de vista redutor de mero comerciante do cinema".

Mas, aparentemente, "ET" justificava que se quebrasse essa regra. E, no entanto, antes de "ET" já tinham surgido filmes como o "Tubarão" (Spielberg, 1975), "A Guerra das Estrelas" (George Lucas, 1977), "O Império Contra-Ataca" (Lucas, 1980) ou "Os Salteadores da Arca Perdida" (Spielberg, 1981). O que é que fazia do filme sobre um extraterrestre perdido na Terra um objecto tão especial que levou Augusto M. Seabra, o organizador do dossier do Expresso, a considerá-lo "a mais extraordinária figuração do 'outro' na história do cinema", ou Lauro António a escrever no "Diário de Notícias" que "ET é o poema de uma geração" e que "Spielberg assume-se como a lanterna mágica de uma época"?

Emoção, eis a questão

O filme atraía o público e fazia a unanimidade da crítica. Bem, não exactamente a unanimidade. Eduardo Prado Coelho, nas páginas do mesmo jornal, dizia que "'ET' é um filme por vezes muito belo, de que gosto francamente, um filme que me merece a maior estima, mas não é 'Citizen Kane', 'India Song' ou 'Gertrud'. Eis a questão". Quanto a ser a "mais extraordinária figuração do outro na história do cinema", considerava-o sobretudo "a mais afável representação do outro" (Seabra respondia-lhe afirmando que "tais espíritos só aceitam o cinema se legitimado pela boa referência cultural, de preferência literária").

Para João Lopes, a atenção dada a "ET" justificava-se, por um lado, porque o filme "lançava a fábula como registo" numa altura em que o cinema "reinventava a tradição do filme de aventuras" (sobretudo desde o "Tubarão"), e por outro lado porque, numa época de grande popularidade da ficção científica, "ET" oferecia, associado a esta, uma "dimensão humana fortíssima".

"O filme é tanto mais perturbante quanto relança na cultura cinematográfica popular valores de raiz humanista, e fá-lo através do confronto com o não-humano, com o extraterrestre". Nas salas, os espectadores comoviam-se com um "ET que não é um típico extraterrestre, mas alguém que, como qualquer ser humano, quer voltar para casa", diz João Lopes. As pessoas comoviam-se - inevitavelmente? - com a forma desesperada como Elliot tentava proteger a pequena criatura do mundo ameaçador dos adultos, que não passam de corpos apressados, filmados da cintura para baixo, que se cruzam no ecrã na perseguição de algo que não compreendem. Comoviam-se com a morte do extraterrestre e a forma como este se devolve Elliot à vida. E comoviam-se com a despedida final: "Vem", diz o ET. "Fica", responde-lhe Elliot. "Auch".

É a questão da emoção - ou de uma certa infantilização das emoções - que se intromete, e por isso perturba, na recepção ao filme. Eduardo Prado Coelho (EPC) citava mesmo um "espectador mais exaltado" que afirmava que "aquele a quem este filme não faz chorar é um exilado da emoção humana". Hoje continua a pensar o mesmo: "Spielberg é um cineasta razoável que, entre filmes por vezes interessantes, foi acentuando a sua irresistível atracção pelo sentimentalismo lamechas". E, recordando a sua recente posição em relação a um outro filme, sublinha "uma linha de continuidade de 'ET' que desembocou na 'Amélie Poulain'" - referindo-se ao filme de Jean-Pierre Jeunet. "'Spielberg é um verdadeiro profissional do cinema", afirma, "mas entre o profissional e o artista genial há uma diferença como a que vai de Spielberg a Orson Welles". E quanto à "representação do outro", "temos vindo a confrontarmo-nos com formas de alteridade mil vezes mais interessantes, como as de Cronenberg ou David Lynch".

Mas se EPC não mudou de opinião, Seabra também não. Não esquece a primeira vez que viu o filme, na estreia mundial, no Festival de Cannes, e do título do artigo que escreveu: "O filme do nosso deslumbramento". "'ET' era um filme que nos interrogava", diz. Por isso criou uma polarização que obras anteriores de Spielberg não criaram, como 'Os Salteadores da Arca Perdida', que foi visto como um objecto mais inofensivo".

"'ET' é o filme mais pessoal de Spielberg, com a questão da ausência do pai, o meio dos subúrbios, um filme em que existem as tensões latentes do estado pré-púbere". Além disso - ou, talvez, antes disso - há para Seabra o "puro gozo cinematográfico". Com "ET" "era possível redescobrir uma capacidade de encanto e fascínio que não existia desde a idade clássica".

Quanto às emoções, diz João Lopes, "vamos aprendendo que estas não são necessariamente universais". E, afinal, a divisão entre o que é emocional e o que é cerebral é "redutora"."Não creio que sintamos emoções fora das nossas ideias, nem que as nossas ideias se dêem fora das emoções que temos".

Será, afinal, desta confusão que surge a dúvida da personagem de Peter Coyote - que, embora fascinado pelos extraterrestres é, apesar de tudo, um adulto e portanto está no filme "do outro lado", do lado dos que, mesmo quando compreendem algo, nunca compreendem tudo. A certa altura ele pergunta ao irmão mais velho de Elliot se este "pensa os pensamentos" do ET. "Não", responde-lhe Michael, "Elliot sente os seus sentimentos". Haverá uma diferença?

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